Blog do Lulu 2.0

Friday, June 23, 2006

O homem que não sabe mandar flores.

Aquela era sempre a hora mais difícil. Geraldo nunca foi um grande paquerador. Para se dar bem, invariavelmente, estivesse a lei da oferta e da procura como estivesse, ele tinha que investir tempo, papo e dinheiro. Homem bom de conversa, acabava divertindo a moça. Uma conquista nunca lhe custava menos do que cinema, jantar e no dia seguinte, um belo arranjo de flores.
Até aí tudo bem. É freguês da floricultura Mundo Flora. Negócio de família que Elisângela herdou há muitos anos, quando Geraldo era apenas uma criança e ela, a jovem e bela Liz.
Hoje, dona Liz é uma senhora muito simpática, prestativa e mãe de nove filhas. Conhece tudo quanto é tipo de mulher, o que sempre foi muito interessante para ele. A tia é um poço de conhecimento. Ele conversava, falava um pouco da moça da vez e dona Liz se apressava em sugerir algo que a fulana iria amar de paixão, era infalível. Gastava uns trocados e pronto.
O problema era o cartão. Nessa hora, ele sempre lembrava da frase que um homem famoso falou numa palestra da firma:
“O cartão é mais importante do que as flores”
Desde aí, toda vez que se vê diante de um maldito papelzinho em branco, entra em pânico. Num gesto de bravura e coragem, Geraldo resolveu tentar mais uma vez. Queria colocar ali alguma coisa diferente, sensível, capaz de preparar o clima. Aquele pedaço de mulher merecia algo especial. Pensou em ser bem romântico:
“Se te quero, e como te quero,
em nome do amor e da arte,
capaz de me levar a qualquer parte”
Achou meio bobo, meio brega. Soava como refrão daquelas canções de festivais estudantis. Tentou pensar em algo mais casual, que refletisse uma personalidade jovial e despojada:
“A saudade de ter sem nunca ter tido
A vontade de dizer o que nunca foi dito”
Também não gostou. Achou distante para a ocasião, meio existencialista, em voz alta, soou até triste. Decidiu tentar algo passional, à la latin lover assumido:
“Deixar prender-me quando tudo o que quero é poder render-me,
livrar-me quando tudo o que quero é ser levado”
Rasgou e atirou no lixo. Aquilo não era um cartão, mais parecia fala de novela mexicana. Ele pelejou contra a própria falta de habilidade, mas nada do que lhe vinha à cabeça parecia ser bom o suficiente. Foi então que apelou. Tentou copiar algo desses cartões prontos que se pode comprar em livrarias, bancas de jornal e camelôs. Consultou livros de poesias, de citações, tudo em busca de alguma inspiração, de algo para copiar e nada.
A insegurança, coisa normal nesta fase de seus relacionamentos, começava a se tornar incerteza. Os questionamentos faziam-lhe coçar o couro cabeludo. Quando isso acontecia, quando lhe atacava uma coceira tremenda no cucuruto, Geraldo já sabia, era neste momento que começava a desconfiar do próprio taco.
Ora, se não conseguia nem escrever uma baboseira, como faria na hora de convencer a moça? Se tremia e ficava nervoso diante de um papelucho em branco, o que aconteceria na hora dos finalmentes? Cansado daquele perrengue, resolveu fazer como sempre tinha feito. Acabou e começou o tal cartão do mesmo jeito, exatamente como fez tantas outras vezes:
“Acho que te amo. Quer me ajudar a tirar essa dúvida?”
Existia uma pequena variação para ser usada de acordo com a idade, o estilo, o perfil da moça e a sugestão da florista. Era mais ou menos assim:
“Acho que te amo. Vamos descobrir juntos?”.
Muita gente desdenhava, a grande maioria duvidava quando ele contava, mas dava certo mesmo, era a mais pura verdade. A resposta era quase sempre positiva e imediata. Principalmente quando o arranjo de flores era grande e o cartão bem pequeno, escrito em letras calcadas no papel pela força do nervosismo.
Funcionava porque esse era o verdadeiro Geraldo. Por trás daquela voz baixa e daquela expressão assustada, daquele jeito tímido e desajeitado, se escondia um homem e tanto, raridade nos dias de hoje. Isso era o que comentavam suas namoradas, primas, amigas íntimas, amigas fáceis.
O cara tem pegada. Sabe o que fazer com uma mulher nas mãos,
e com as mãos numa mulher - todas elas concordavam.
O mesmo mexericavam as amigas das amigas e as conhecidas das inimigas.
Geraldo é anterior ao metrossexualismo. Para ele, andrógeno é nome de hormônio e as mulheres são a melhor invenção do Homem.

Sunday, June 18, 2006

Cultura Popular é isso aí.

Nunca se interessou, quis saber ou foi atrás. Sempre achou um atraso de vida essa história de futebol. Era contra qualquer festa, esporte, religião ou credo capaz de alienar, de anestesiar toda uma nação. Mas não tinha culpa se todo mundo só falava nisso, o tempo todo. Muito educado, prestava atenção enquanto nas reuniões e encontros, seus amigos conversavam, debatiam, discutiam e, às vezes, até brigavam. Assim os acontecimentos, nomes, datas e placares ficavam registrados em sua memória privilegiada.
Por isso, e só por isso, sabia que o primeiro gol brasileiro em uma Copa do Mundo foi marcado por João Coelho Neto, o Preguinho, em 1930, na Copa do Uruguai. Sabia também que Leônidas da Silva, o Diamante Negro, no Mundial de 38, na França, marcou um gol descalço, ou melhor, de meião. E valeu! Naquela época, chuteira não dava bolha. Estourava e deixava o caboclo de pé descalço no meio do gramado.
Ópio do povo, circo de alienados, quer vê-lo irritado? Fale que o Brasil é o país do futebol. Pronto, o homem vira bicho. Para ele, este é o país da terra, das belezas e riquezas naturais. Vinte e dois marmanjos correndo feito uns desesperados, trombando e se batendo atrás de uma bola, isso é sinal de mentalidade subdesenvolvida. Tudo bem que no futebol americano o pessoal quase se mata e não é raro um ou outro acabar a temporada em cadeira de rodas. Mas já reparou nas roupas que eles usam? Coisa de gente civilizada.
Conhece quase, senão todos, os times de futebol existentes do lado de baixo do Equador por falta de opção. Tem que conhecer, infelizmente, faz parte da história do país onde nasceu e mora. Saber que Zé Horta e Mosquito, a dupla de ataque do América de Belo Horizonte dos anos 50, era comparada à Pelé e Coutinho, não é um simples detalhe. Assim como, escarafunchar a história de Gilberto Nenêga, atacante do Nacional da Serra, canhoto e de pernas tortas, que diziam ser anterior a Garrincha, é quase um trabalho de pesquisa antropológica. Ainda que o futebol, na opinião dele, é, senão a maior, uma das grandes mazelas da nação.
Para ele, a Copa de 70, no México, é o ápice de todo esse absurdo. Como podem falar dessa Seleção e desse tal Tricampeonato até hoje? Só sofreu, se emocionou, chorou e comemorou forçado pelas circunstâncias. Quebrasse a corrente para frente para ver, podia ser tachado de comunista, preso e sabia ele mais o quê. Torceu por pura obrigação cívica.
Ouse falar em paixão nacional e o homem fica louco, indignado. Como Pelé, Falcão, Zico, Romário e os Ronaldos podem ser mais conhecidos, aqui e lá fora, do que José Américo de Almeida, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos e o pintor Sacilotto? Isso não lhe entra na cabeça.
As únicas coisas que consegue recitar são as escalações de todas as Seleções Brasileiras e das equipes que disputam as séries A, B, C e D do Brasileirão. Mesmo assim, não se conforma com o esquecimento em que caíram os autores clássicos, os pais tupiniquins das nobres artes.
Atreva-se a falar em futebol-arte para ver, o homem chega a uivar. Até hoje, odeia Paolo Rossi com todas as forças e guarda imensa admiração pela figura de Telê Santana, o técnico da seleção dos sonhos, aquela de 82, na Espanha. Mas nem por isso aceita que o ato de jogar bola seja encarado como manifestação artística. O Carnaval ainda vá lá.
Na Copa de 94, não torceu pela Seleção Brasileira e sim contra o imperialismo e a dominação econômica exercida pelos americanos. Sofreu, chorou e comemorou por uma questão ideológica. Vencer dentro dos EUA foi triunfar sobre as imposições e exigências do FMI. Ele podia comemorar porque não se deixava alienar. Já os outros, pareciam um bando de macacos atrás da única bananeira sobrevivente na face da terra.
A Copa da França, em 98, ele bloqueou de sua mente. Maria Antonieta, Napoleão, Alain Prost, François Mitterrand, definitivamente, ele não gosta dos franceses.
Em 2002, acompanhou o Mundial Coréia/Japão para prestigiar os asiáticos. Tem muitos amigos que aderiram ao budismo e ele mesmo busca na milenar filosofia oriental respostas para vários de seus dilemas pessoais.
Nas reuniões e encontros de família, ouvindo os papos, conversas, debates e discussões dos mais velhos, conheceu os enredos de Saramandaia, O Bem-Amado e Roque Santeiro, acompanhou a vida de Salomão Ayala e descobriu quem matou Odete Roittman. Para ele, só existe uma coisa mais alienante, nefasta e brasileira do que o futebol: a novela.

Friday, June 16, 2006

Se contassem, nem ele acreditaria.

Sexta-feira. Final do expediente. Renato Costa Souza Aguiar está em sua sala. Dona Lívia, a secretária, avisa pelo interfone:
- Doutor Aguiar, tem uma mulher aqui na recepção, ela disse que o senhor a está esperando, mas eu não tenho nada agendado.
Aguiar sentiu um tremendo frio na barriga que escalou sua espinha e gelou.
- O nome Dona Lívia? Pergunte o nome.
- Disse que o senhor a conhece.
- De onde?
- Da noite passada.
Ele fez de novo. Abusou e desta vez a prova o perseguira, estava bem ali, esperando na recepção. Sabia que isso aconteceria cedo ou tarde, e no ritmo em que andava, mais cedo do que tarde. Logo conheceria a fase terminal da ressaca, a amnésia alcoólica. Em sua memória, não havia rastro nem vulto da tal mulher que aguardava na sala de espera. Respirou fundo, pediu calma a ele mesmo e repetiu várias vezes que aquela não foi à primeira, mas, escapasse ileso, seria a última vez que faria aquilo. Um ataque de pudor, vergonha e arrependimento o fez prometer por todos os Deuses e Céus que jamais chegaria a tal ponto novamente. Nunca mais abandonaria seu corpo, sua alma, jurou, sem dedos cruzados, que não mais deixaria sua sorte nas mãos de dama tão traiçoeira quanto a noite.
Aguiar pressiona a tecla do interfone:
- Dona Lívia, descreva para mim essa senhora?
- É...
Lívia levou alguns segundos procurando um adjetivo adequado e disparou:
- Exótica.
- Como exótica? Tem um olho no meio da testa a desgraçada?
- Bom, ela é morena, mais ou menos um metro e setenta e cinco, olhos claros, muito elegante, educada; finalmente parece que o senhor acertou.
- Um minuto – pediu Aguiar.
Secretária mais abusada, desde quando é da conta dela quando erro ou acerto, se me dou bem ou mal, mas depois eu cuido disso – pensou com ele.
- Diga para ela entrar.
Desta vez, o frio percorreu sua espinha em sentido contrário. Um arrepio de excitação é bem diferente de um calafrio de medo. Que bela surpresa aquela bebedeira teria lhe aprontado? Na dúvida, era melhor estar preparado. Ele correu para o banheiro, se arrumou, retocou o gel dos cabelos. Determinou estrategicamente a posição das duas cadeiras que ficavam logo à sua frente. Sentou-se, respirou fundo e soltou o ar.
Já podia ouvir os passos de Dona Lívia. Ela conduzia a misteriosa mulher pelo corredor. Aguiar observava o exato momento em que, com a mão direita, abriria a maçaneta. Com a mão direita, pois a família Aguiar jamais confiou em canhotos.
- Pode passar minha senhora.
Aguiar pisca uma, duas, três vezes seguidas. Aquilo era uma visão. Como ele podia não lembrar? Em algum lugar de seu cérebro deveria estar registrado aquele acontecimento, aquela noite. Tudo transbordaria do subconsciente para o consciente assim que ela falasse. Era isso, ele precisava fazê-la falar.
Aguiar jamais se esquecia de como soava uma voz, era um excelente imitador, tinha incrível sensibilidade para sons, na infância chegaram a dizer que seu ouvido era absoluto, como o dos músicos considerados virtuosos. Precisava perguntar algo, e rápido, para que ela respondesse e aquela doce voz rouca fizesse pipocar em sua memória lembranças da maravilhosa noite que o álcool tentara apagar de sua mente.
- Como vai? Que bom ver você de novo!
- Eu vou muito bem e se fosse você não estaria nenhum pouco feliz em me ver.
Nada do que Aguiar havia previsto acontecera. Aquela voz grossa e profunda, não combinava com a figura clássica de mulher nascida em berço de ouro que ela exibia, muito menos com os longos e suavemente ondulados cabelos que lhe caíam pelos ombros.
Calma agora - pensou com ele - eu estava bêbado, ela pensa que não lembro de nada, deve ter me socorrido, me deixado em casa e está jogando verde, é isso, como são previsíveis essas mulheres.
- Dei muito trabalho ontem à noite?
- Para mim não.
Outro calafrio, mais uma vez ela o surpreendera. A resposta foi rápida, curta e grossa, exatamente o oposto do que Aguiar imaginara. Mas um homem experiente, quatrocentão paulistano com anos e anos de botecos, mulheres e noitadas, saberia se livrar dela em dois palitos.
Aquilo certamente era um jogo no qual ela estava blefando. Era chegada a hora de ser duro, de demonstrar confiança:
- Eu jamais daria trabalho a uma mulher como você. É só uma maneira de quebrar o gelo.
- Deu muito trabalho à sua mulher, filhos, família, amigos e acima de tudo aos seus anjos da guarda, um batalhão deles.
Aquilo foi como um sinal, um estalo, estava na cara, era uma piada, telegrama animado de um daqueles filhos da puta. Eu bebi, dei trabalho, os caras me deixaram em casa, me puseram para dormir e agora tão querendo me sacanear - pensou Aguiar - como são ingênuos esses babacas.
Já demonstrando alguma irritação, esbravejou:
- O que você quer? Quem te mandou aqui?
- Deus.
- Isso é uma piada.
Aguiar já começava achar a situação perigosa. Louca, maníaca, foragida, um seqüestro, tanta coisa passou por sua cabeça até que resolveu colocar um fim naquele papo:
- Afinal, quem diabos é você?
- Sua morte.
- Mas o que é isso? Que brincadeira de mau gosto é essa?
Ele ameaçou chamar a segurança. Ela, fria e distante, o advertiu:
- Não adianta. Infelizmente, de hoje você não passa.
- Mas por quê? O que foi que eu fiz?
- Você não se lembra de nada, nada? É mais sério do que eu imaginava.
- Olha, vá embora! Retire-se neste instante ou eu chamo a segurança.
- Ninguém pode te ouvir. É tarde demais.
Só então, Aguiar se deu conta da gravidade da situação. Percebeu que podia ouvir a ambulância, ver a polícia, sua mulher, sua mãe, seu pai e seu corpo estendido no chão.
Com a mesma voz grossa e fala pausada, ela encerrou de vez o assunto:
- Se sua secretária dissesse que um ceifador esquelético, metido em um hábito de monge franciscano, empunhando uma foice maior do que ele queria lhe falar, você não o deixaria entrar, não é verdade? Agora vamos embora que tem gente te esperando.

Wednesday, June 07, 2006

Isso que é rapidinha.

- Quer sair comigo?
- Não.
- Por quê?
- Eu nem te conheço, rapaz.
- Mais um motivo. Quer oportunidade melhor do que esta?
- Xi, não estou entendendo.
- Ah, é supersimples: a gente vai namorando enquanto se conhece e se conhecendo enquanto namora. Assim, ninguém cria expectativas nem alimenta esperanças, portanto, não se decepciona.
- Você está de onda com a minha cara ou é maluco mesmo, heim?!
- Só se for do tipo maluco por você.
- Ai, que cara mais cafona.
- No fundo, toda a mulher gosta…
- E ainda por cima é machista.
- No fundo, toda a mulher gosta…
- Você sabe meu nome? Sabe com quem está falando?
- Sei, com a mulher da minha vida.
- Ui, essa doeu. Dá licença que eu tenho mais o que fazer.
- Okay! E quando a gente se vê de novo?
- No Dia de São Nunca.
- E quando vai ser isso: mês, dia, hora, local?
- Eu não acredito.
- Em quê?
- Em você!
- Mas eu sou de verdade. Isso sempre acontece com as mulheres. Vocês vivem sonhando, pedindo, rezando, fazendo promessas ao Santo Casamenteiro por um fulano que seja assim e assado, bom de cama, mesa e banho. Aí, quando encontram o tal sujeito, ficam assim: tête-à-tête com ele, não acreditam.
E, só para te avisar, em 90% dos casos, pelo menos dos que eu conheço, é assim que desperdiçam a sorte grande.
- Você está insinuando, com esse papo furado, que é minha sorte grande?
Olha o teu tamanho, vê se te enxerga, baixinho!
- Aqui ó, sou acima da média e tamanho não é documento. Se tem uma coisa que eu odeio é essa mania; esses joguinhos de sedução. Quer saber? Para mim deu, encheu, fui... Tchau!
- Espera aí, onde você pensa que vai?
- Não te interessa, nem me conhece.
- Como assim? Lógico que conheço! E você não pode sair desse jeito, sem mais nem menos.
- Claro que posso.
- E a que horas o senhor volta?
- Nossa como você me sufoca.

Sunday, June 04, 2006

A mulher, o marido e a bola.

Ronaldo se chama assim por motivos óbvios. O nome foi presente de seu pai. Já a desvairada paixão por futebol era coisa de família. Ele nunca teve talento ou jeito para ser jogador. Só ia a campo quando era dono da bola e mesmo assim ficava no gol.
Quando entrou na adolescência conheceu sua segunda paixão, sim, porque a primeira era a bola.
Ana Luiza, a menina mais bonita da escola, não era a mais cobiçada pelos meninos. Mas, para ele, era a mais bela.
Já Ronaldo era um sujeito comum. A falta de intimidade com a bola o diferenciava dos outros. Sendo assim, devotava à Ana Luiza toda a atenção que os outros meninos dedicavam a rua, ao campinho de terra e aos jogos disputados entre times escolhidos no par ou ímpar.
Ele então conheceu outro tipo de pelada. Nessa brincadeira, não se sentia nem um pouco rejeitado, muito pelo contrário. Os anos passaram, eles se casaram, tiveram filhos que cresceram e reavivaram em Ronaldo sua primeira paixão, a bola. Era um tal de levar os meninos à escola de futebol, da escolinha para o estádio e do estádio para frente da televisão. Afinal, os meninos tinham que assistir às mesas redondas para depois não falar bobagem.
Tentou, pelejou, mas não teve jeito, Ana Luiza não conseguiu pegar gosto pelo esporte. Procurou algo que preenchesse o vazio deixado pelos filhos que lhe roubaram o marido, e pelo marido que lhe tomara os filhos.
A coisa não era bem assim, mas assim ela sentia. Foi parar na cozinha. Passava horas, dias, semanas cozinhando e provando do próprio manjar.
Às vésperas de mais uma Copa do Mundo, os três enlouqueceram. Meses antes da Seleção ser convocada, eles começaram a preparação. Bandeiras, fitinhas em verde e amarelo, matracas, cornetas, bonés, camisetas e claro, bolões, vários, com as cores da Canarinho, voavam pela casa.
Aninha resolveu participar, se animou, fazia pratos que combinavam tons de verde e amarelo. Risoto de açafrão com suflê de legumes, arroz verde com frango e purê de mandioquinha, sorvete de pistache com calda de caramelo bem clarinha e, foi nesse dia, na hora da sobremesa, que ela se deu conta de que ninguém havia notado. Indignada, ali mesmo discursou. Discorreu sobre as dificuldades e a solitude de ser mulher, mãe, cozinheira, arrumadeira, dona de casa. Nem bem terminou de falar, o marido emendou: e bola.
Realmente Ana Luiza engordara um pouco. Ela sempre fora saborosa, cheinha, mas de tanto cozinhar tinha acumulado gordura nos lugares errados.
Enfurecida, se armou da calma que só as mulheres conseguem ter numa hora como essa, respirou, perguntou e respondeu, tudo de primeira.
Sabe quando eu vou emagrecer? Quando você voltar a jogar 90 minutos, disputar a prorrogação e ainda pedir para bater o último pênalti.
Ele engasgou, tossiu, o mais velho gargalhou e o mais novo enrubesceu.
Era ela ou ela. Naquela mesma noite, Ronaldo decidiu abandonar de vez a bola e ficar com a mulher.
Os filhos passaram a ir ao futebol acompanhados por um dos tios ou por outro parente mais velho.
Ana Luiza recuperou rapidamente a forma física e Ronaldo está jogando pelada como nunca.

Thursday, June 01, 2006

A Chatice e o Existencialismo Barato.

Viver é muito chato. Já pensou em quanto tempo se perde com isso?
Tem gente que perde a vida inteira. E se você puser um “e ser feliz” aí na frente a coisa se complica ainda mais.
Eu que sempre fui uma negação em matemática, que sempre achei enfadonho resolver problemas, não gosto de viver. Acho extremamente trabalhoso e sem graça.
Poderia estar fazendo algo muito mais divertido e interessante como, por exemplo, estudando, trabalhando, escrevendo, indo a algum museu ou a um bom restaurante. Viajando pelo mundo, conhecendo uma praia virgem, uma ilha deserta, um país longínquo, berço de alguma cultura exótica. Poderia estar jogando conversa fora, olha, tanta coisa eu poderia estar fazendo em vez de ficar preocupado em viver e ser feliz.
Poderia ter casado várias vezes, ter filhos, famílias dilaceradas pelos quatro cantos do mundo. Até ser um cara normal é mais bacana. Passear com o cachorro, ter dívidas, hora marcada no dentista, sogra chata e todas as obviedades que você aí consiga imaginar.
Tomar uma carraspana. Até uma vulgaridade destas tem seus encantos perto do porre que é viver; se paro e penso por mais alguns minutos, evidências me levam a concluir que viver é coisa para aqueles de caráter precário. Exige habilidade política e poder de dissimulação. É algo que se deve fazer às escondidas, à sorrelfa, por debaixo dos panos, sem que ninguém saiba, sem que ninguém perceba. Trata-se de um pecado capital e inconfessável. E se tentar ser feliz então, está automaticamente excomungado, com passaporte carimbado e passagem só de ida para o inferno.
Eu, que sou de família católica e fui educado em colégio marista, não me permito tamanho desfrute.
Agora, àqueles de espírito livre e mente arejada vai aqui o conselho de um franco observador da vivência alheia.
Tentar viver e ser feliz não leva a nada, a não ser à morte precoce. Nem a lugar nenhum, a não ser que haja um bom espaço no túmulo da família, outra chatice que está lá, esperando por você.
O que resta é diversão. Divirtam-se por muitos e muitos anos. Saiam, dancem e gozem sempre que for possível. Riam sempre antes e mais do que os outros, porque esse papo de que quem ri por último, ri melhor é coisa de quem ainda espera um dia ser feliz da vida.
Reservem tempo livre. Conheçam mais praias, montanhas, lagos, rios e, mais importante do que tudo isso, afastem-se de pessoas que aberta e honestamente estejam tentando viver felizes para sempre.
Vai que isso pega. Deus os livre!