Blog do Lulu 2.0

Wednesday, September 27, 2006

Achados & Perdidos.

- Amor, você viu minha cueca branca?
- E eu lá sei de cueca! Deve tá na gaveta junto com as outras.
- Não tá, já olhei.
- Olha direito.
- Já olhei!
- Quanto você quer apostar que se for aí eu acho?
- Quero apostar nada. Você esconde as coisas e depois fica me sacaneando.
- Você é que não acha nada nunca.
- Olha quem tá falando: até a chave do carro tu já perdeu dentro da geladeira, fica na tua!
- Aconteceu uma vez na vida e eu tava na maior correria. Vai, vamos logo senão a gente acaba chegando atrasado.
- Eu já tô pronto.
- Achou a cueca?
- Não.
- Meu Deus o que é isso?
- Quê foi?
- Cueca colorida com calça branca?! Enlouqueceu?! Perdeu o juízo?!
- Mas branca eu só tenho uma e deve tá lavando. E se eu for de jeans, com aquela calça preta nova, heim, heim?!
- Nem pensar, mandei lavar e passar essa aí, o casamento é de manhã e todo mundo vai de branco. Espera aí, deixa eu ver… Tchan-tchantchan-tchan: e aqui, a sua única cueca branca, lavada, limpa e na gaveta, junto com as outras.
- Onde é que tava?
- Junto com as outras, na gaveta.
- Culpa sua que esconde tudo, enfia tudo nas gavetas. Olha a bagunça que tá isso aqui.
- A gaveta é sua, faço muito de arrumar.
- É por isso que eu não acho nada.
- Não acha nada porque não procura direito. Culpa da sua mãe.
- Não coloca minha mãe na história, ela não tem nada a ver com isso.
- E a minha, que toda hora vira piada e seus amigos nunca nem viram a pobre.
- Mas aí é diferente, tua mãe não dá pra levar a sério, né?! A velha tá doidinha.
- E a tua, que se acha cocota até hoje?!
- Pô, não fala assim, ela não aceita que o tempo passou, acontece com muita gente, um problema sério esse.
- Um só não... Vários. Sua mãe tem vários problemas. Você viu minha bolsa preta, aquela pequena que eu comprei na lua-de-mel?
- E eu vou lá saber de bolsa!
- Mas tava aqui no guarda-roupa…
- Esse é o seu lado. Não é você que acha tudo? Que sempre sabe onde está tudo?
- Sabe aquela… Aquela que eu fui na festa da Kika?
- Ôrra, faz uns meses isso, e depois, não é você que acha tudo, que sabe onde está tudo? Então, se vira.
- Será que eu emprestei pra alguém?
- Eu tô pronto!
- Ah, agora espera aí… Vem, me ajuda a procurar.
- Mas que puta idéia de jerico casar de manhã. Casamento tem que ser no final do dia, aí vem o jantar e a festa pros convidados encherem a cara com o noivo, que no final das contas é o que interessa, o que vale a pena. Agora, ficar naquele senta, levanta, senta, levanta dentro da igreja é o maior mico, e depois não tem nem uma boca livre… Ainda não vi onde é que tá a graça… Eu não acredito que a gente tá perdido… Estela, mas você não vai aprender nunca: pergunta, anota, pega um mapa, uma referência, qualquer coisa. Um lugar longe desses… Onde nós estamos? Tô perguntando onde nós estamos… Cadê o guia?
- Aqui, no porta luvas… Ih, não tá mais?!
- Quem usou o carro por último foi você.
- E o guia acho que foi a Heleninha.
- Você emprestou o guia pra Helena de novo?
- Emprestei! É só ligar e pedir pra ela olhar. Dá o celular.
- Eu não peguei.
- Como não?
- Quando a gente sai quem traz o celular é você, esqueceu?
- Você viu o tamanho da minha bolsa?
- Não vi nem que você tinha achado o raio da bolsa.
- Onde eu ia enfiar o celular?
- Pois é, você não falou nada, eu não peguei telefone nenhum.
- E agora?
- Boa pergunta.
- Você não vai fazer nada?
- Eu?! O casamento é de uma amiga sua com um amigo seu, num lugar que você disse que conhecia e sou eu quem tem que fazer alguma coisa?!
- Ora, você é o homem do casal.
- A-ha! Faz-me rir! Agora eu sou o homem, né?! Há meia hora eu não dava conta nem das minhas cuecas.
- Mais uma prova de que você é o homem do casal. Vai, não enche, pára e pergunta pra alguém.
- Dá o convite pra eu ver o mapa.
- Pera aí, deixa eu pegar.
- Vai logo Estela.
- Tô procurando, tenho certeza que eu coloquei na bolsa.
- Mas não era nesta bolsa que não cabia nada?
- Amore, acho que eu esqueci.
- Você tá de brincadeira, tá me tirando, né?!
- Mas também… Fica tudo nas minhas costas… Ora, quem dirige é que tem que ter o endereço.
- Eu não acredito! Você esqueceu o convite… É o fim!
- Tudo eu, tudo eu, sempre eu, esqueci ué, normal… Vai dizer que você nunca esqueceu nada?
- Estela, não começa vai, maior vacilo… Não é você que acha tudo, que sabe onde está tudo, então… Cadê o endereço desse maldito lugar?
- Olha quem tá falando, você não dá conta nem das suas cuecas!
- Não muda de assunto, liga pra alguém e arruma esse endereço antes que eu perca a paciência.
- Amore, a gente tá sem celular, lembra?!
- Uh!
- Calma benhê! Viu, eu tava pensando…
- Lá vem!
- Você quer mesmo ir a esse casamento?
- Estela, faz seis meses que eu não quero ir nesse negócio. Isso é arrumação sua, que desde que recebeu o convite não fala em outra coisa.
- Vamos nos perder?
- Estela, é exatamente isso o que a gente tá fazendo há mais ou menos uma hora. Não tinha percebido ainda não? A gente tá completamente perdido, sem guia, sem mapa, não temos nem o convite.
- Bobo, tô falando de se perder de verdade.
- Mais ainda?! Tô quase largando o carro e pegando um táxi para sair deste fim de mundo.
- Difícil vai ser encontrar um táxi por aqui.
- Isso é verdade.
- Olha lá! Tá vindo um pessoal de carro ali…
- Vai, se abaixa, se esconde, se esconde…
- Pára! Pára eles e pergunta se também tão indo pro casamento.
- Eu não! Justo agora que até você desistiu de ir nesse troço... Vou é me perder de volta pra casa, vamos embora daqui.

Tuesday, September 19, 2006

Não buzine. Gênio pensando.

Inegável que aquilo não era comum. Até para o divã ele já tinha levado o tema, mas só dentro daquele automóvel antigo, que tinha sido de seu pai, conseguia o que julgava ser o máximo em concentração.
Era ali, dentro do sedan dos anos 50, que costumava tomar as decisões que considerava imperativas. Aquele habitáculo era seu templo. Ali meditava, filosofava e tentava encontrar respostas para questões que o perturbavam e que, na opinião dele, eram indeclináveis para o futuro da humanidade. Sendo assim, se distraía com freqüência, vivia dando fechadas, cometendo as maiores imprudências e barbaridades no trânsito. Nada raro, encarava o maior bate-boca com um ou outro motorista mais exaltado.
Naquele domingo ele acordou mais cedo e inspirado. Passou rapidamente os olhos pelo jornal e saiu dirigindo pela cidade.
Pobre do moço que estava apressado justo naquele dia.
Precisava chegar cedo à Feira do Automóvel para arrumar um bom lugar e expor o carro, seminovo, baixa quilometragem, em excelente estado, que levava para vender.
No cruzamento, o motorista da frente não arrancava. A primeira vez, ele achou que fosse algum defeito, tratava-se de uma antiguidade. Diante da imobilidade do condutor, na terceira vez que o semáforo fechou e tornou a abrir, resolveu buzinar. Vai que o velhinho dormiu – pensou.
Foi o bastante para despertar a ira do homem. Mais uma vez tinha sido interrompido numa de suas mais férteis divagações. Sentia que estava perto, mas muito perto mesmo. Próximo como nunca havia estado antes de algo importante, de realizar seu grande sonho, de gritar Eureka a plenos pulmões com causa e razão. Foi exatamente neste momento que o infeliz do moço buzinou.
O homem desceu, foi até a janela do carro do pobre que só tentava seguir seu caminho, e deitou falação.
-Ôh cidadão, e se eu fosse um matemático e estivesse prestes a resumir as operações de seleção, projeção, produto cartesiano, união e diferença entre conjuntos, em uma única equação e assim revolucionar a álgebra? Ou fosse eu o dramaturgo ateniense Sófocles, tentando dar outro desfecho a Antígona, sua obra maestra. Imaginou o tamanho do estrago?
O que teria acontecido, por exemplo, se esse buzinaço viesse bem na hora em que Arquimedes estabelecia os princípios básicos da alavanca ou da hidrostática? Ou no momento em que decifrava o valor de Pi? Imaginou uma cornetada dessas na hora em que Einstein se preparava para modificar definitivamente o quadro conceitual da física; no exato momento em que concluía a experiência que lhe deu razão, que provou que o tempo não transcorre na mesma velocidade para a matéria em repouso e para a matéria em aceleração?
Esta constatação simplesmente permitiu compreender a dinâmica do sol e a origem de sua energia, caso o senhor não saiba. Seguindo este raciocínio, eu poderia ser um imortal como James Clerk Maxwell, Charles Darwin, Louis Pasteur, ou até mesmo Isaac Newton. Imaginou: eu inventando o cálculo, formulando as leis da mecânica e do movimento, descobrindo a lei da gravidade, aí vem você e buzina?!
Ah! Faça-me o favor, poderia ter mudado o destino de toda a raça humana.
-O que talvez tivesse sido uma boa, não acha não?!
-Olha a placa… Você está vendendo o carro?
-Não pensador, estou vendendo a buzina! Quer comprar? Escuta só.

Tuesday, September 12, 2006

Carne e Osso.

Aquela manhã ela acordou decidida. Resolveu o que fazer. Convicta, disse a si mesma que iria viver para escrever, já que precisava escrever para sobreviver.
Decidiu naquela manhã e, todo dia, há mais de quatro décadas, toma a mesma decisão.
Sem aposentadoria, fama ou glória, seu sustento vem da pensão arrumada por um amigo que fundou uma dessas sociedades de amparo a artistas idosos. Mas ela não sabe disso.
Diariamente, por volta do meio-dia, desiste, sente-se estressada, cansada de tentar encontrar algo novo, de espetar o dedo no palheiro das palavras. Mas esse cansaço dura só até o final da tarde, começo da noite, à hora do dia de que mais gosta. É quando toma ar, respira fundo e volta ao ofício, às anotações, aos livros, dicionários e tudo aquilo que envolve seu nobre lavor, sua conturbada paixão.
Os parentes se revezam. Vez por outra um passa lá, lê os originais, critica e discute só para mantê-la ocupada. Não tem mais editora, editor nem prazo de entrega para seus escritos. Mas ela não sabe disso.
Muito já se escreveu sobre o ato, mas pouco se versou sobre as sensações que experimenta quem se atreve a desafiar o papel em branco.
Pode até ser que já tenham escrito algo, mas, com certeza, ninguém o fez com tanta intensidade nem com tamanha competência e conhecimento de causa.
As mãos trêmulas com juntas já endurecidas atacam o teclado do computador, presente do neto mais velho.
Escrever com pachorra é como se estar casada, muito bem casada, diga-se de passagem, mas saber que às vezes será traída. É se fazer de cega, não dar trela ao tempo nem tampouco ao vento. Colocar aqui e ali um pouco do que se pensa e sente, um pouco de nós mesmas. É abrir e fechar parênteses.
A naturalidade e a sem-vergonhice são as mesmas dos tempos em que anotava segredos em seus diários de adolescente. Seus dedos se movem com a urgência de quem não quer deixar o pensamento escapar.
Rasgar o dicionário, esquecer a ortografia, abandonar a gramática e, mesmo assim, achar que tudo está no devido lugar. Assim é escrever por paixão. Fazer o certo só para depois desfazer. Errado é mais gostoso, dá mais prazer tomar caminhos insuspeitos, vias sinuosas e chegar a raciocínios insinuantes, andar num círculo deliciosamente vicioso que tende a durar dias, meses, anos e até vidas inteiras. A escrita é um vício tão excitante que só a inapelável obrigação de escrever profissionalmente é capaz de me fazer parar e, mesmo assim, só o faz porque quando chega essa hora já estou um tanto atrasada.
Para quem é de carne, este ofício é osso. E disso ela sabe muito bem.

Wednesday, September 06, 2006

Santo Sacro.

Tudo levava a crer que, aquele sim, era um homem que tinha Deus na alma, no coração e na ponta da língua.
- Seja o que Deus quiser.
Decretava sempre que lhe perguntavam o que ele achava do futuro.
- Tomara Deus.
Suspirava sempre que alguém lhe perguntava se ele iria comparecer à reunião, evento ou happy hour.
- Deus lhe pague.
Pleiteava por todos que lhe fizessem um favor, segurassem o elevador ou a ele dessem passagem na calçada.
- Vá com Deus.
Recomendava aos colegas que saiam para almoçar, tomar café, ir à festa ou voltar para casa.
- Deus me ajude.
Rogava sempre que assombrado por alguma incerteza.
- Só Deus salva.
Exaltava diante de qualquer desapontamento ou desilusão.
- Deus te ilumine.
Fazia votos ao ouvir os planos e projetos de qualquer amigo, colega ou conhecido.
- Deus me livre.
Isolava qualquer situação ou acontecimento desagradável do qual tomasse conhecimento.
- Pelo amor de Deus.
Clamava quando realmente precisava de alguma coisa.
- Meu Deus do Céu?
Duvidava sempre que surpreendido por algo ou alguém.
- Juro por Deus!
Proferia sempre que alguém ousava duvidar de sua palavra.
- Ai, meu Deus.
Arremedava sempre que alguma coisa parecia que não ia dar certo.
-Deus, dai-me forças.
Suplicava sempre que sentia fome, sede, cansaço ou preguiça.
-Deus Todo Poderoso.
Louvava sempre, qualquer que fosse o motivo ou razão.
Isto durou meses, anos, até que um dia não deu mais para um de seus colegas. Aquilo tinha que parar. Ninguém agüentava mais. Respeitavam o credo, tinham consideração pelo companheiro de trabalho, mas para tudo nessa vida há limites.
- Ôh cara, você acredita mesmo em Deus? Então, deixa o Sujeito em paz, pára de azucrinar o Cara.
- Olha, acreditar eu não acredito, mas queria tanto que ele existisse.
- Ai, meu santo.
- Você também tem o seu?
- Não, tenho nada não. Estou falando da minha paciência, do meu santo saco.
- Que Deus o proteja.