Se contassem, nem ele acreditaria.
Sexta-feira. Final do expediente. Renato Costa Souza Aguiar está em sua sala. Dona Lívia, a secretária, avisa pelo interfone:
- Doutor Aguiar, tem uma mulher aqui na recepção, ela disse que o senhor a está esperando, mas eu não tenho nada agendado.
Aguiar sentiu um tremendo frio na barriga que escalou sua espinha e gelou.
- O nome Dona Lívia? Pergunte o nome.
- Disse que o senhor a conhece.
- De onde?
- Da noite passada.
Ele fez de novo. Abusou e desta vez a prova o perseguira, estava bem ali, esperando na recepção. Sabia que isso aconteceria cedo ou tarde, e no ritmo em que andava, mais cedo do que tarde. Logo conheceria a fase terminal da ressaca, a amnésia alcoólica. Em sua memória, não havia rastro nem vulto da tal mulher que aguardava na sala de espera. Respirou fundo, pediu calma a ele mesmo e repetiu várias vezes que aquela não foi à primeira, mas, escapasse ileso, seria a última vez que faria aquilo. Um ataque de pudor, vergonha e arrependimento o fez prometer por todos os Deuses e Céus que jamais chegaria a tal ponto novamente. Nunca mais abandonaria seu corpo, sua alma, jurou, sem dedos cruzados, que não mais deixaria sua sorte nas mãos de dama tão traiçoeira quanto a noite.
Aguiar pressiona a tecla do interfone:
- Dona Lívia, descreva para mim essa senhora?
- É...
Lívia levou alguns segundos procurando um adjetivo adequado e disparou:
- Exótica.
- Como exótica? Tem um olho no meio da testa a desgraçada?
- Bom, ela é morena, mais ou menos um metro e setenta e cinco, olhos claros, muito elegante, educada; finalmente parece que o senhor acertou.
- Um minuto – pediu Aguiar.
Secretária mais abusada, desde quando é da conta dela quando erro ou acerto, se me dou bem ou mal, mas depois eu cuido disso – pensou com ele.
- Diga para ela entrar.
Desta vez, o frio percorreu sua espinha em sentido contrário. Um arrepio de excitação é bem diferente de um calafrio de medo. Que bela surpresa aquela bebedeira teria lhe aprontado? Na dúvida, era melhor estar preparado. Ele correu para o banheiro, se arrumou, retocou o gel dos cabelos. Determinou estrategicamente a posição das duas cadeiras que ficavam logo à sua frente. Sentou-se, respirou fundo e soltou o ar.
Já podia ouvir os passos de Dona Lívia. Ela conduzia a misteriosa mulher pelo corredor. Aguiar observava o exato momento em que, com a mão direita, abriria a maçaneta. Com a mão direita, pois a família Aguiar jamais confiou em canhotos.
- Pode passar minha senhora.
Aguiar pisca uma, duas, três vezes seguidas. Aquilo era uma visão. Como ele podia não lembrar? Em algum lugar de seu cérebro deveria estar registrado aquele acontecimento, aquela noite. Tudo transbordaria do subconsciente para o consciente assim que ela falasse. Era isso, ele precisava fazê-la falar.
Aguiar jamais se esquecia de como soava uma voz, era um excelente imitador, tinha incrível sensibilidade para sons, na infância chegaram a dizer que seu ouvido era absoluto, como o dos músicos considerados virtuosos. Precisava perguntar algo, e rápido, para que ela respondesse e aquela doce voz rouca fizesse pipocar em sua memória lembranças da maravilhosa noite que o álcool tentara apagar de sua mente.
- Como vai? Que bom ver você de novo!
- Eu vou muito bem e se fosse você não estaria nenhum pouco feliz em me ver.
Nada do que Aguiar havia previsto acontecera. Aquela voz grossa e profunda, não combinava com a figura clássica de mulher nascida em berço de ouro que ela exibia, muito menos com os longos e suavemente ondulados cabelos que lhe caíam pelos ombros.
Calma agora - pensou com ele - eu estava bêbado, ela pensa que não lembro de nada, deve ter me socorrido, me deixado em casa e está jogando verde, é isso, como são previsíveis essas mulheres.
- Dei muito trabalho ontem à noite?
- Para mim não.
Outro calafrio, mais uma vez ela o surpreendera. A resposta foi rápida, curta e grossa, exatamente o oposto do que Aguiar imaginara. Mas um homem experiente, quatrocentão paulistano com anos e anos de botecos, mulheres e noitadas, saberia se livrar dela em dois palitos.
Aquilo certamente era um jogo no qual ela estava blefando. Era chegada a hora de ser duro, de demonstrar confiança:
- Eu jamais daria trabalho a uma mulher como você. É só uma maneira de quebrar o gelo.
- Deu muito trabalho à sua mulher, filhos, família, amigos e acima de tudo aos seus anjos da guarda, um batalhão deles.
Aquilo foi como um sinal, um estalo, estava na cara, era uma piada, telegrama animado de um daqueles filhos da puta. Eu bebi, dei trabalho, os caras me deixaram em casa, me puseram para dormir e agora tão querendo me sacanear - pensou Aguiar - como são ingênuos esses babacas.
Já demonstrando alguma irritação, esbravejou:
- O que você quer? Quem te mandou aqui?
- Deus.
- Isso é uma piada.
Aguiar já começava achar a situação perigosa. Louca, maníaca, foragida, um seqüestro, tanta coisa passou por sua cabeça até que resolveu colocar um fim naquele papo:
- Afinal, quem diabos é você?
- Sua morte.
- Mas o que é isso? Que brincadeira de mau gosto é essa?
Ele ameaçou chamar a segurança. Ela, fria e distante, o advertiu:
- Não adianta. Infelizmente, de hoje você não passa.
- Mas por quê? O que foi que eu fiz?
- Você não se lembra de nada, nada? É mais sério do que eu imaginava.
- Olha, vá embora! Retire-se neste instante ou eu chamo a segurança.
- Ninguém pode te ouvir. É tarde demais.
Só então, Aguiar se deu conta da gravidade da situação. Percebeu que podia ouvir a ambulância, ver a polícia, sua mulher, sua mãe, seu pai e seu corpo estendido no chão.
Com a mesma voz grossa e fala pausada, ela encerrou de vez o assunto:
- Se sua secretária dissesse que um ceifador esquelético, metido em um hábito de monge franciscano, empunhando uma foice maior do que ele queria lhe falar, você não o deixaria entrar, não é verdade? Agora vamos embora que tem gente te esperando.
- Doutor Aguiar, tem uma mulher aqui na recepção, ela disse que o senhor a está esperando, mas eu não tenho nada agendado.
Aguiar sentiu um tremendo frio na barriga que escalou sua espinha e gelou.
- O nome Dona Lívia? Pergunte o nome.
- Disse que o senhor a conhece.
- De onde?
- Da noite passada.
Ele fez de novo. Abusou e desta vez a prova o perseguira, estava bem ali, esperando na recepção. Sabia que isso aconteceria cedo ou tarde, e no ritmo em que andava, mais cedo do que tarde. Logo conheceria a fase terminal da ressaca, a amnésia alcoólica. Em sua memória, não havia rastro nem vulto da tal mulher que aguardava na sala de espera. Respirou fundo, pediu calma a ele mesmo e repetiu várias vezes que aquela não foi à primeira, mas, escapasse ileso, seria a última vez que faria aquilo. Um ataque de pudor, vergonha e arrependimento o fez prometer por todos os Deuses e Céus que jamais chegaria a tal ponto novamente. Nunca mais abandonaria seu corpo, sua alma, jurou, sem dedos cruzados, que não mais deixaria sua sorte nas mãos de dama tão traiçoeira quanto a noite.
Aguiar pressiona a tecla do interfone:
- Dona Lívia, descreva para mim essa senhora?
- É...
Lívia levou alguns segundos procurando um adjetivo adequado e disparou:
- Exótica.
- Como exótica? Tem um olho no meio da testa a desgraçada?
- Bom, ela é morena, mais ou menos um metro e setenta e cinco, olhos claros, muito elegante, educada; finalmente parece que o senhor acertou.
- Um minuto – pediu Aguiar.
Secretária mais abusada, desde quando é da conta dela quando erro ou acerto, se me dou bem ou mal, mas depois eu cuido disso – pensou com ele.
- Diga para ela entrar.
Desta vez, o frio percorreu sua espinha em sentido contrário. Um arrepio de excitação é bem diferente de um calafrio de medo. Que bela surpresa aquela bebedeira teria lhe aprontado? Na dúvida, era melhor estar preparado. Ele correu para o banheiro, se arrumou, retocou o gel dos cabelos. Determinou estrategicamente a posição das duas cadeiras que ficavam logo à sua frente. Sentou-se, respirou fundo e soltou o ar.
Já podia ouvir os passos de Dona Lívia. Ela conduzia a misteriosa mulher pelo corredor. Aguiar observava o exato momento em que, com a mão direita, abriria a maçaneta. Com a mão direita, pois a família Aguiar jamais confiou em canhotos.
- Pode passar minha senhora.
Aguiar pisca uma, duas, três vezes seguidas. Aquilo era uma visão. Como ele podia não lembrar? Em algum lugar de seu cérebro deveria estar registrado aquele acontecimento, aquela noite. Tudo transbordaria do subconsciente para o consciente assim que ela falasse. Era isso, ele precisava fazê-la falar.
Aguiar jamais se esquecia de como soava uma voz, era um excelente imitador, tinha incrível sensibilidade para sons, na infância chegaram a dizer que seu ouvido era absoluto, como o dos músicos considerados virtuosos. Precisava perguntar algo, e rápido, para que ela respondesse e aquela doce voz rouca fizesse pipocar em sua memória lembranças da maravilhosa noite que o álcool tentara apagar de sua mente.
- Como vai? Que bom ver você de novo!
- Eu vou muito bem e se fosse você não estaria nenhum pouco feliz em me ver.
Nada do que Aguiar havia previsto acontecera. Aquela voz grossa e profunda, não combinava com a figura clássica de mulher nascida em berço de ouro que ela exibia, muito menos com os longos e suavemente ondulados cabelos que lhe caíam pelos ombros.
Calma agora - pensou com ele - eu estava bêbado, ela pensa que não lembro de nada, deve ter me socorrido, me deixado em casa e está jogando verde, é isso, como são previsíveis essas mulheres.
- Dei muito trabalho ontem à noite?
- Para mim não.
Outro calafrio, mais uma vez ela o surpreendera. A resposta foi rápida, curta e grossa, exatamente o oposto do que Aguiar imaginara. Mas um homem experiente, quatrocentão paulistano com anos e anos de botecos, mulheres e noitadas, saberia se livrar dela em dois palitos.
Aquilo certamente era um jogo no qual ela estava blefando. Era chegada a hora de ser duro, de demonstrar confiança:
- Eu jamais daria trabalho a uma mulher como você. É só uma maneira de quebrar o gelo.
- Deu muito trabalho à sua mulher, filhos, família, amigos e acima de tudo aos seus anjos da guarda, um batalhão deles.
Aquilo foi como um sinal, um estalo, estava na cara, era uma piada, telegrama animado de um daqueles filhos da puta. Eu bebi, dei trabalho, os caras me deixaram em casa, me puseram para dormir e agora tão querendo me sacanear - pensou Aguiar - como são ingênuos esses babacas.
Já demonstrando alguma irritação, esbravejou:
- O que você quer? Quem te mandou aqui?
- Deus.
- Isso é uma piada.
Aguiar já começava achar a situação perigosa. Louca, maníaca, foragida, um seqüestro, tanta coisa passou por sua cabeça até que resolveu colocar um fim naquele papo:
- Afinal, quem diabos é você?
- Sua morte.
- Mas o que é isso? Que brincadeira de mau gosto é essa?
Ele ameaçou chamar a segurança. Ela, fria e distante, o advertiu:
- Não adianta. Infelizmente, de hoje você não passa.
- Mas por quê? O que foi que eu fiz?
- Você não se lembra de nada, nada? É mais sério do que eu imaginava.
- Olha, vá embora! Retire-se neste instante ou eu chamo a segurança.
- Ninguém pode te ouvir. É tarde demais.
Só então, Aguiar se deu conta da gravidade da situação. Percebeu que podia ouvir a ambulância, ver a polícia, sua mulher, sua mãe, seu pai e seu corpo estendido no chão.
Com a mesma voz grossa e fala pausada, ela encerrou de vez o assunto:
- Se sua secretária dissesse que um ceifador esquelético, metido em um hábito de monge franciscano, empunhando uma foice maior do que ele queria lhe falar, você não o deixaria entrar, não é verdade? Agora vamos embora que tem gente te esperando.