I.G.G.R.E.S. Pérola Negra.
O homem bebia desde sempre. Bebia e cantava.
No começo, sua carreira de sambista parecia que ia decolar, mas logo depois do carnaval, a gravadora cortou o jabá das rádios e o pobre caiu em esquecimento.
Passou a se apresentar em bares e restaurantes de amigos. Morava de favor na casa de um compadre até o dia em que só lhe sobrou a rua. Dormia onde pudesse cair. Com o tempo, a experiência e a incapacidade de parar em pé, começou a cair onde pudesse dormir.
Cantava até mesmo enquanto dormia, o que chamava a atenção de quem passava por ali. Despertava, apontava a garrafa que pousava ao seu lado para céu, e dizia:
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de Jesus!
Voltava a se deitar balbuciando melodias. A roda de curiosos aumentava dia após dia.
Conclusões precipitadas e boatos percorreram milhares de quilômetros com a ligeireza dos raios.
Bisbilhoteiros chegavam de todas partes do país e logo se tornavam ardorosos fiéis.
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de
Jesus! Repetia o ébrio pregador a todo e qualquer que lhe doasse algumas moedas ou qualquer outra coisa.
Juntaram-se ao cantor, dois dos mais antigos e notórios beberrões da cidade. Ambos pareciam ter mais tempo de rua do que de vida. Um deles ficava sabendo das coisas pelas manchetes da banca e pelo noticiário que assistia através da vitrine de uma loja de eletroeletrônicos. Este se tornou o falador. Começou a traduzir o que o outro cantava embolado.
- Aí que saudades... – cantado.
- Só para os de boa-vontade – falado.
- Ferida aberta no meu coração... – cantado.
- E de mão aberta haverá salvação - falava enquanto passava o chapéu.
A função do outro era manter o etilista visionário em pé e cantando.
O falador agora, em vez de pedir esmola na porta da igreja, prestava atenção à missa. Revisava e repetia os sermões que ouvia do padre.
- Irmãos e irmãs, é a Deus Pai, aquele que a tudo criou, que de tudo sabe e que a tudo vê. É a Ele que vocês estão doando - o discurso melhorara, e muito, assim como a arrecadação.
Alugaram um sobrado. Moravam na parte de cima e celebravam na de baixo. Os rituais atraíam cada vez mais gente. Em pouco tempo, alugaram um grande galpão, compraram uma aparelhagem de voz e contrataram uma banda.
As cerimônias viviam lotadas, fiéis e sacerdotes cantavam e dançavam. A quem fosse perguntar de que religião ou credo se tratava, todos tinham a resposta na ponta da língua.
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de Jesus!
Refrão que causou espécie e se espalhou com a força dos ventos que uivam. Dizem que foi até tema de reunião com Vossa Santidade, o Papa, lá no Vaticano. De lá mesmo, dá-se conta de que veio uma missão para ver o que realmente estava acontecendo.
As notícias que chegavam ao Clero eram de arrepiar.
Os missionários não resistiram à divina curiosidade e foram direto ao culto. Chegaram no clímax da celebração. Usando da autoridade que as sacras e bordadas batinas lhes conferiam, os clérigos atravessaram a multidão e foram ter com o falador.
- Meu senhor, dizem que este culto é ilegítimo.
- Como assim?! Por acaso, alguém disse: não beberás, não celebrarás com teus irmãos, não baterás coxas com tuas irmãs? Então, aqui é tudo legítimo e justo: homem paga 20, mulher paga 10, couvert artístico só sextas e sábados, e não tem consumação mínima; lei do livre arbítrio.
Os padres não entenderam nada. Como missionários, conheciam várias línguas, entre as quais o português, mas não o suficiente. Apesar disso, podiam sentir algo de iluminado ali. Toda aquela euforia e felicidade tinham que ser coisa do Divino.
- Minha alegria atravessou o mar... - cantado
- E Moisés separou o mar - falado
- E foi parar na passarela... - cantado
- Com Deus a vida é bela - falado
Perguntaram o que era aquilo que estavam bebendo. O falador deu a mesma explicação que embevecia os seguidores.
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de Jesus!
O falador ofereceu para que provassem.
- Que assim seja – responderam juntos.
Provaram da malvada, e depois, bastou um telefonema para A Igreja Global, Grêmio Recreativo e Escola de Samba Pérola Negra ser, oficialmente, promulgada pelo Vaticano e abençoada por Vossa Santidade.
A tradição foi mantida e os missionários foram iniciados. De seus próprios copos ofereceram um generoso trago ao santo e, em seguida, viraram a danada num só gole.
-Aaah-mém!
Aclamaram, celebraram e se embebedaram juntos, como fazem até hoje, de quarta a domingo, das 20h até o último fiel.
No começo, sua carreira de sambista parecia que ia decolar, mas logo depois do carnaval, a gravadora cortou o jabá das rádios e o pobre caiu em esquecimento.
Passou a se apresentar em bares e restaurantes de amigos. Morava de favor na casa de um compadre até o dia em que só lhe sobrou a rua. Dormia onde pudesse cair. Com o tempo, a experiência e a incapacidade de parar em pé, começou a cair onde pudesse dormir.
Cantava até mesmo enquanto dormia, o que chamava a atenção de quem passava por ali. Despertava, apontava a garrafa que pousava ao seu lado para céu, e dizia:
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de Jesus!
Voltava a se deitar balbuciando melodias. A roda de curiosos aumentava dia após dia.
Conclusões precipitadas e boatos percorreram milhares de quilômetros com a ligeireza dos raios.
Bisbilhoteiros chegavam de todas partes do país e logo se tornavam ardorosos fiéis.
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de
Jesus! Repetia o ébrio pregador a todo e qualquer que lhe doasse algumas moedas ou qualquer outra coisa.
Juntaram-se ao cantor, dois dos mais antigos e notórios beberrões da cidade. Ambos pareciam ter mais tempo de rua do que de vida. Um deles ficava sabendo das coisas pelas manchetes da banca e pelo noticiário que assistia através da vitrine de uma loja de eletroeletrônicos. Este se tornou o falador. Começou a traduzir o que o outro cantava embolado.
- Aí que saudades... – cantado.
- Só para os de boa-vontade – falado.
- Ferida aberta no meu coração... – cantado.
- E de mão aberta haverá salvação - falava enquanto passava o chapéu.
A função do outro era manter o etilista visionário em pé e cantando.
O falador agora, em vez de pedir esmola na porta da igreja, prestava atenção à missa. Revisava e repetia os sermões que ouvia do padre.
- Irmãos e irmãs, é a Deus Pai, aquele que a tudo criou, que de tudo sabe e que a tudo vê. É a Ele que vocês estão doando - o discurso melhorara, e muito, assim como a arrecadação.
Alugaram um sobrado. Moravam na parte de cima e celebravam na de baixo. Os rituais atraíam cada vez mais gente. Em pouco tempo, alugaram um grande galpão, compraram uma aparelhagem de voz e contrataram uma banda.
As cerimônias viviam lotadas, fiéis e sacerdotes cantavam e dançavam. A quem fosse perguntar de que religião ou credo se tratava, todos tinham a resposta na ponta da língua.
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de Jesus!
Refrão que causou espécie e se espalhou com a força dos ventos que uivam. Dizem que foi até tema de reunião com Vossa Santidade, o Papa, lá no Vaticano. De lá mesmo, dá-se conta de que veio uma missão para ver o que realmente estava acontecendo.
As notícias que chegavam ao Clero eram de arrepiar.
Os missionários não resistiram à divina curiosidade e foram direto ao culto. Chegaram no clímax da celebração. Usando da autoridade que as sacras e bordadas batinas lhes conferiam, os clérigos atravessaram a multidão e foram ter com o falador.
- Meu senhor, dizem que este culto é ilegítimo.
- Como assim?! Por acaso, alguém disse: não beberás, não celebrarás com teus irmãos, não baterás coxas com tuas irmãs? Então, aqui é tudo legítimo e justo: homem paga 20, mulher paga 10, couvert artístico só sextas e sábados, e não tem consumação mínima; lei do livre arbítrio.
Os padres não entenderam nada. Como missionários, conheciam várias línguas, entre as quais o português, mas não o suficiente. Apesar disso, podiam sentir algo de iluminado ali. Toda aquela euforia e felicidade tinham que ser coisa do Divino.
- Minha alegria atravessou o mar... - cantado
- E Moisés separou o mar - falado
- E foi parar na passarela... - cantado
- Com Deus a vida é bela - falado
Perguntaram o que era aquilo que estavam bebendo. O falador deu a mesma explicação que embevecia os seguidores.
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de Jesus!
O falador ofereceu para que provassem.
- Que assim seja – responderam juntos.
Provaram da malvada, e depois, bastou um telefonema para A Igreja Global, Grêmio Recreativo e Escola de Samba Pérola Negra ser, oficialmente, promulgada pelo Vaticano e abençoada por Vossa Santidade.
A tradição foi mantida e os missionários foram iniciados. De seus próprios copos ofereceram um generoso trago ao santo e, em seguida, viraram a danada num só gole.
-Aaah-mém!
Aclamaram, celebraram e se embebedaram juntos, como fazem até hoje, de quarta a domingo, das 20h até o último fiel.