Blog do Lulu 2.0

Wednesday, July 26, 2006

I.G.G.R.E.S. Pérola Negra.

O homem bebia desde sempre. Bebia e cantava.
No começo, sua carreira de sambista parecia que ia decolar, mas logo depois do carnaval, a gravadora cortou o jabá das rádios e o pobre caiu em esquecimento.
Passou a se apresentar em bares e restaurantes de amigos. Morava de favor na casa de um compadre até o dia em que só lhe sobrou a rua. Dormia onde pudesse cair. Com o tempo, a experiência e a incapacidade de parar em pé, começou a cair onde pudesse dormir.
Cantava até mesmo enquanto dormia, o que chamava a atenção de quem passava por ali. Despertava, apontava a garrafa que pousava ao seu lado para céu, e dizia:
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de Jesus!
Voltava a se deitar balbuciando melodias. A roda de curiosos aumentava dia após dia.
Conclusões precipitadas e boatos percorreram milhares de quilômetros com a ligeireza dos raios.
Bisbilhoteiros chegavam de todas partes do país e logo se tornavam ardorosos fiéis.
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de
Jesus! Repetia o ébrio pregador a todo e qualquer que lhe doasse algumas moedas ou qualquer outra coisa.
Juntaram-se ao cantor, dois dos mais antigos e notórios beberrões da cidade. Ambos pareciam ter mais tempo de rua do que de vida. Um deles ficava sabendo das coisas pelas manchetes da banca e pelo noticiário que assistia através da vitrine de uma loja de eletroeletrônicos. Este se tornou o falador. Começou a traduzir o que o outro cantava embolado.
- Aí que saudades... – cantado.
- Só para os de boa-vontade – falado.
- Ferida aberta no meu coração... – cantado.
- E de mão aberta haverá salvação - falava enquanto passava o chapéu.
A função do outro era manter o etilista visionário em pé e cantando.
O falador agora, em vez de pedir esmola na porta da igreja, prestava atenção à missa. Revisava e repetia os sermões que ouvia do padre.
- Irmãos e irmãs, é a Deus Pai, aquele que a tudo criou, que de tudo sabe e que a tudo vê. É a Ele que vocês estão doando - o discurso melhorara, e muito, assim como a arrecadação.
Alugaram um sobrado. Moravam na parte de cima e celebravam na de baixo. Os rituais atraíam cada vez mais gente. Em pouco tempo, alugaram um grande galpão, compraram uma aparelhagem de voz e contrataram uma banda.
As cerimônias viviam lotadas, fiéis e sacerdotes cantavam e dançavam. A quem fosse perguntar de que religião ou credo se tratava, todos tinham a resposta na ponta da língua.
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de Jesus!
Refrão que causou espécie e se espalhou com a força dos ventos que uivam. Dizem que foi até tema de reunião com Vossa Santidade, o Papa, lá no Vaticano. De lá mesmo, dá-se conta de que veio uma missão para ver o que realmente estava acontecendo.
As notícias que chegavam ao Clero eram de arrepiar.
Os missionários não resistiram à divina curiosidade e foram direto ao culto. Chegaram no clímax da celebração. Usando da autoridade que as sacras e bordadas batinas lhes conferiam, os clérigos atravessaram a multidão e foram ter com o falador.
- Meu senhor, dizem que este culto é ilegítimo.
- Como assim?! Por acaso, alguém disse: não beberás, não celebrarás com teus irmãos, não baterás coxas com tuas irmãs? Então, aqui é tudo legítimo e justo: homem paga 20, mulher paga 10, couvert artístico só sextas e sábados, e não tem consumação mínima; lei do livre arbítrio.
Os padres não entenderam nada. Como missionários, conheciam várias línguas, entre as quais o português, mas não o suficiente. Apesar disso, podiam sentir algo de iluminado ali. Toda aquela euforia e felicidade tinham que ser coisa do Divino.
- Minha alegria atravessou o mar... - cantado
- E Moisés separou o mar - falado
- E foi parar na passarela... - cantado
- Com Deus a vida é bela - falado
Perguntaram o que era aquilo que estavam bebendo. O falador deu a mesma explicação que embevecia os seguidores.
- Se o vinho é o sangue, a cachaça são as lágrimas de Jesus!
O falador ofereceu para que provassem.
- Que assim seja – responderam juntos.
Provaram da malvada, e depois, bastou um telefonema para A Igreja Global, Grêmio Recreativo e Escola de Samba Pérola Negra ser, oficialmente, promulgada pelo Vaticano e abençoada por Vossa Santidade.
A tradição foi mantida e os missionários foram iniciados. De seus próprios copos ofereceram um generoso trago ao santo e, em seguida, viraram a danada num só gole.
-Aaah-mém!
Aclamaram, celebraram e se embebedaram juntos, como fazem até hoje, de quarta a domingo, das 20h até o último fiel.

Wednesday, July 19, 2006

Quanto mais se reza, mais aparece.

Folgado:
- Ôh rapaz, e aí, como é que vai?
Sério:
- Tudo bem.
Folgado:
- Eu tô na luta.
Vai almoçar por aqui? Então vamos nessa, colocar a conversa em dia. Quanto tempo, heim?!
Sério:
- É!
Folgado:
- Continua casado?
Sério:
- Continuo.
Folgado:
- Com a mesma mulher?
Sério:
- É!
Folgado:
- As crianças, como vão?
Sério:
- Crescendo.
Folgado tenta agradar:
- Você não muda mesmo, né?! Um homem de poucas palavras. Este ar misterioso sempre fez sucesso. Conta aí da secretária?!
Sério:
- Que secretária?!
Folgado:
- Aquela bonitona.
Sério:
- Foi embora.
Folgado tenta agradar:
- Você demitiu a moça porque a coisa começou a complicar. Ela começou a querer mais do seu tempo, mais de você, eu sei como funciona.
Sério:
- Não é nada disso. Meu chefe mandou ela embora.
Folgado:
- Xiii, agora você tem chefe?!
Sério:
- É! A coisa não anda fácil.
Folgado tenta agradar:
- Mas já, já você vira o chefe do chefe, sempre foi o primeiro da turma.
Sério:
- Eu?!
Folgado tenta agradar:
- Achou que eu não ia lembrar?! Não fosse você e eu não tinha nem completado o segundo grau, vestibular então, não tinha nem passado perto. Tenho muito a te agradecer, rapaz.
Sério:
- Você se formou em que mesmo?
Folgado tenta enrolar:
- Esqueceu? Já sei, tá confundindo: eu fui na formatura, mas não me formei não. Fui só na festa que tava muito boa por sinal. Falando em boa, você se casou com aquela sua namoradinha?
Sério:
- Óh o respeito!
Folgado tenta agradar:
- Brincadeira, a gente cresce e vai ficando sério, você tá certo. É como eu sempre digo: com família não se brinca. Eu sei como funciona. Foi mal, desculpa aí.
Mas voltando ao assunto: bons tempos aqueles não é mesmo?!
Lembra do Galvão? Cara, ele não vai acreditar. Empresta aqui teu celular.
Folgado pega o telefone:
- Alô, Galvão! Cara, você não vai acreditar?! Não Galvão, não dá pra te pagar ainda. Pô meu irmão, eu ligo na maior amizade, você nem bem atende e já vem falando de grana, me cobrando, falta de consideração. Até parece que não sabe como é que funciona?! Ôh Galvão, adivinha quem tá aqui comigo... O namorado daquela gostosa que fazia psicologia lembra? Aquele gordinho, careca, rico para cacete?! Então, tô com ele aqui no shopping.
Folgado interrompe a conversa:
- O Galvão tá mandando um abraço.
Folgado volta a falar no celular:
- Mas viu Galvão, não vai dar para eu aparecer por aí hoje não… Calma rapaz! Não é nada disso… É que a coisa tá feia para mim lá na quebrada, mas óh, não vou te deixar falando não.
Faz assim: tá vendo esse número aí na bina? Então, anota e qualquer coisa me liga. Que o quê, rapaz?! Pára com isso, tô falando sério. Galvão, vai na fé, pode ligar na boa. Abraço forte.
Folgado agradece:
- Cara, pra-zer-za-ço em te ver, beijão na família e obrigado pelo telefone, valeu mesmo, de coração.
Sério e agora preocupado:
- Mas e se o Galvão ligar? Eu digo o quê?
Folgado:
- Diz para ele que mais tarde eu ligo!

Wednesday, July 12, 2006

Otacílio encontra Darwin.

Já não tinha mais palavras para nada. O menino falador e brincalhão deu lugar a um sujeito quieto e encafifado. Cursava o Estadual quando a professora de Ciências apresentou à classe Charles Darwin, que diz em sua teoria o que muito cientista defende até hoje, que nós, os seres humanos, somos descendentes diretos dos macacos.
Indicou para leitura o livro, A Origem das Espécies Através da Seleção Natural, e avisou que era matéria de prova.
Rapaz, a tal deriva genética deu um nó na cabeça do pobre do menino. Acreditar em macro evolução era negar todo o resto. Até aquele dia, para ele, Deus era quem tinha feito tudo, criado o homem, a terra e o céu.
Aceitar que ele era simplesmente a evolução do macaco era negar tudo o que sua avó e sua mãe lhe diziam e ensinavam. Aquilo o encucou de verdade.
Cedo demais trocou a preocupação de manter em dia seu estoque de gomas de mascar e balas de hortelã pelo paradoxo da criação: religião versus biologia.
Toda vez que ia à igreja, passava a acreditar mais em Deus do que naquele cientista maluco. O que mudava a cada visita ao zoológico. Diante do viveiro dos macacos se punha a pensar na tal teoria. Era inevitável. Um dia imaginou que Zé, de José, poderia ser uma evolução de chipanzé. Essa história estava fundindo a cuca de Otacílio.
Já crescido, não terminou o colégio e teve que começar a trabalhar. A pressão, o estresse, a rotina, a condução lotada, o trânsito parado, tudo isso não tinha nada a ver com evolução na opinião dele e do tal de Darwin.
Otacílio não estudou tanto quanto gostaria, mas de burro não tinha nada, porém, de macaco ele começava a achar que tinha alguma coisa. Quando era criança, vivia trepando em árvores, chegava da escola e sua mãe passava horas futucando sua cabeça, procurando piolhos.
Será que os macacos lá do estrangeiro são loiros e têm olhos claros? E os lá da Ásia então, será que têm olhos puxados e preferem peixe cru em vez de banana? – pensava com ele.
Foi ver o longa-metragem feito a partir do seriado que assistia com seu irmão mais velho, O Planeta dos Macacos. Saiu no meio. Aqueles macacos eram muito humanos e aqueles humanos muito macacos. Maquiagem! Era tudo maquiagem, truque, ficção.
Mudou para o interior em busca de sossego e qualidade de vida.
Por curiosidade, instinto e pura falta do que fazer, não demorou a se embrenhar na mata.
Encontrou uma família de primatas com a qual começou a se comunicar através de mímica. Otacílio passou a visitá-los frequentemente. Com o tempo, começaram a se entender.
A mais velha entre as fêmeas apresentou-o ao resto do grupo. A macaca contou como tudo ali funcionava, a organização social e política da comunidade e o que para eles significava liberdade. Deixou claro que ali havia uma hierarquia, que o grupo tinha um líder ao qual todos seguiam e também explicou, tim-tim por tim-tim, como se organizavam as famílias, formadas por um macho e várias fêmeas.
Jovem e impetuoso, Otacílio foi viver no mato com seus ancestrais. Tentou se adaptar. O diálogo evoluía com a convivência. No começo, tudo ia bem. Fez amizades, ajudava nas tarefas e participava das brincadeiras.
Ao tentar formar sua própria família, Otacílio trocou os pés pelas mãos. Achou que ali, entre eles, aquilo era mais do que normal. A parte que mais o fascinou foi a que ele não entendeu.
Aconselhado pelo líder, voltou à cidade. Era muito humano para viver em um ambiente tão civilizado. O lugar dele era mesmo na selva, mas na de pedra.
Com o passar do tempo, Otacílio se convenceu que a Teoria da Evolução era um tremendo atraso de vida, pelo menos para ele.
Arrumou um novo emprego, se matriculou em um curso supletivo e passou a ser assombrado, na prática, por outro estudo especulativo. Esse bem mais recente, elaborado por físicos e matemáticos, a Teoria do Caos.

Wednesday, July 05, 2006

Molho Inglês.

Dizem que aconteceu em Londres e é uma das passagens preferidas pelos mais antigos e assíduos freqüentadores do pub chamado Shakespeare.
O pessoal não se cansa de contar que, quando a esposa morreu, Philip lhe aprontou uma das boas. Mandou gravar na lápide da falecida:
“Aqui jaz Helen, fria como sempre.”
Durante o velório, Philip mantinha-se calado. Já os amigos prendiam o riso.
O enterro aconteceu no final da tarde, a indignação foi tamanha que, tomando a pá das mãos do coveiro, o pai destruiu a pedra mármore gravada.
Enquanto isso, Philip e seus amigos, apesar de ingleses, saíram à francesa.
Kate, a irmã mais nova, jurou vingança.
Ele embolsou o dinheiro do seguro de vida da patroa e curtiu até não mais poder. Foram anos e anos de jogatina, farra e bebedeira. Bateu as botas enquanto dormia, no rosto, o sorriso dos que descansam em paz.
Assim que soube do falecimento, a irmã mais nova convocou a todos. A família de Helen sempre achou Philip grosseiro e beberrão. Até o primo engraçado com quem eles adoravam sacanear tinha sumido.
O que estariam fazendo todos reunidos no velório do desafeto?! Comemorando?!
Os amigos só entenderam quando a enorme guirlanda chegou à casa mortuária. Primeiro entraram uns homens vestidos de soldadinhos de chumbo. Eles anunciaram o enorme arranjo floral com a faixa que dizia:
“Aqui jaz Philip, duro como nunca.”
A cambada de safados caiu na gargalhada. A família da falecida transformou a derradeira despedida em mais um episódio da história do já folclórico pub. Até hoje no Shakespeare, toda vez que se conta o caso, o comentário vem a reboque:
“Phil teria adorado aquilo.”

Sunday, July 02, 2006

À espera do futuro.

Ele estava ali parado há anos. Parentes próximos, distantes, amigos da família, ninguém nunca entendeu porque e nem teve coragem de perguntar.
Seu Carmelo passava os dias para lá e para cá em sua cadeira de balanço. Sentado ali, se divertia brincando com Pimpão, o vira latas ao qual deu o nome do palhaço que mais gostava na infância.
Foi de sua cadeira balangante que viu suas filhas crescerem, assistiu ao nascimento das netas e, dali mesmo, via as meninas, já crescidas, entrando e saindo.
Todo dia, o Aristides, que trabalha nas proximidades, descia do ônibus e, no caminho até o escritório, cruzava com o velho que, sentado em sua cadeira, balançava e esperava pacientemente.
A rua, que um dia fora tranqüila, hoje é movimentada e tem até hora do rush. Ele passava na ida, o senhor estava lá. Ele voltava e o homem continuava ali.
Com o tempo, aquilo começou a intrigar o Aristides. Enquanto as outras centenas de pessoas que passam por ali todos os dias nem mais o percebiam, pois para elas o velhinho já tinha virado paisagem, para Ari era diferente. Aquilo começou a irritá-lo, virou um tormento, uma obsessão. Até durante os fins-de-semana, estivesse indo para onde fosse, Ari passava por lá para ver se o velhote estava bem.
Chegava mais cedo, saia mais tarde do trabalho e seu Carmelo continuava ali, a balangar-se em sua cadeira.
-Depois do velho na cadeira de balanço à esquerda - uma vez se pegou usando o pobre como referência. Sem que Ari quisesse, seu Carmelo entrou e começou a fazer parte de sua vida. Verdade que sua figura invocava a memória de seus pais e avós já subidos, com quem se sentia em dívida, o que lhe atacava a culpa.
Um dia, Ari não se agüentou. Tinha que fazer algo para que aquilo parasse. Pediu licença, passou o portão e foi ter com o velhote. Perguntou quantos anos tinha. Ele disse que não se lembrava. Perguntou há quanto tempo estava ali. Seu Carmelo começou a fazer as contas. Usou os dedos das mãos, apelou para o lápis sem ponta com o qual fazia palavras cruzadas. Somou, multiplicou e nada. O número era enorme, ultrapassava em muito os dez que sabia contar.
O Aristides já estava ali mesmo e agora queria tirar aquilo a limpo de qualquer jeito. A imagem do velho balangante não saía de sua cabeça e o forçava a pensar no futuro, coisa de que ele não gosta nada, nada. É do tipo que repete para todo mundo que pode: viva o presente porque nunca se sabe o dia de amanhã.
Usou de toda sua pouca educação e delicadeza para tocar no assunto. Aproximou-se, agachou e foi logo perguntando.
- Me diz uma coisa: o que o senhor está fazendo aqui há tanto tempo?
- Estou esperando a vida passar. Mas pelo jeito ela não vem hoje não.
Depois disso, Ari achou melhor mudar de caminho. Passou a descer dois pontos depois e voltar, só para não cruzar mais com seu Carmelo balangando em sua cadeira e brincando com Pimpão.