Carne e Osso.
Aquela manhã ela acordou decidida. Resolveu o que fazer. Convicta, disse a si mesma que iria viver para escrever, já que precisava escrever para sobreviver.
Decidiu naquela manhã e, todo dia, há mais de quatro décadas, toma a mesma decisão.
Sem aposentadoria, fama ou glória, seu sustento vem da pensão arrumada por um amigo que fundou uma dessas sociedades de amparo a artistas idosos. Mas ela não sabe disso.
Diariamente, por volta do meio-dia, desiste, sente-se estressada, cansada de tentar encontrar algo novo, de espetar o dedo no palheiro das palavras. Mas esse cansaço dura só até o final da tarde, começo da noite, à hora do dia de que mais gosta. É quando toma ar, respira fundo e volta ao ofício, às anotações, aos livros, dicionários e tudo aquilo que envolve seu nobre lavor, sua conturbada paixão.
Os parentes se revezam. Vez por outra um passa lá, lê os originais, critica e discute só para mantê-la ocupada. Não tem mais editora, editor nem prazo de entrega para seus escritos. Mas ela não sabe disso.
Muito já se escreveu sobre o ato, mas pouco se versou sobre as sensações que experimenta quem se atreve a desafiar o papel em branco.
Pode até ser que já tenham escrito algo, mas, com certeza, ninguém o fez com tanta intensidade nem com tamanha competência e conhecimento de causa.
As mãos trêmulas com juntas já endurecidas atacam o teclado do computador, presente do neto mais velho.
Escrever com pachorra é como se estar casada, muito bem casada, diga-se de passagem, mas saber que às vezes será traída. É se fazer de cega, não dar trela ao tempo nem tampouco ao vento. Colocar aqui e ali um pouco do que se pensa e sente, um pouco de nós mesmas. É abrir e fechar parênteses.
A naturalidade e a sem-vergonhice são as mesmas dos tempos em que anotava segredos em seus diários de adolescente. Seus dedos se movem com a urgência de quem não quer deixar o pensamento escapar.
Rasgar o dicionário, esquecer a ortografia, abandonar a gramática e, mesmo assim, achar que tudo está no devido lugar. Assim é escrever por paixão. Fazer o certo só para depois desfazer. Errado é mais gostoso, dá mais prazer tomar caminhos insuspeitos, vias sinuosas e chegar a raciocínios insinuantes, andar num círculo deliciosamente vicioso que tende a durar dias, meses, anos e até vidas inteiras. A escrita é um vício tão excitante que só a inapelável obrigação de escrever profissionalmente é capaz de me fazer parar e, mesmo assim, só o faz porque quando chega essa hora já estou um tanto atrasada.
Para quem é de carne, este ofício é osso. E disso ela sabe muito bem.
Decidiu naquela manhã e, todo dia, há mais de quatro décadas, toma a mesma decisão.
Sem aposentadoria, fama ou glória, seu sustento vem da pensão arrumada por um amigo que fundou uma dessas sociedades de amparo a artistas idosos. Mas ela não sabe disso.
Diariamente, por volta do meio-dia, desiste, sente-se estressada, cansada de tentar encontrar algo novo, de espetar o dedo no palheiro das palavras. Mas esse cansaço dura só até o final da tarde, começo da noite, à hora do dia de que mais gosta. É quando toma ar, respira fundo e volta ao ofício, às anotações, aos livros, dicionários e tudo aquilo que envolve seu nobre lavor, sua conturbada paixão.
Os parentes se revezam. Vez por outra um passa lá, lê os originais, critica e discute só para mantê-la ocupada. Não tem mais editora, editor nem prazo de entrega para seus escritos. Mas ela não sabe disso.
Muito já se escreveu sobre o ato, mas pouco se versou sobre as sensações que experimenta quem se atreve a desafiar o papel em branco.
Pode até ser que já tenham escrito algo, mas, com certeza, ninguém o fez com tanta intensidade nem com tamanha competência e conhecimento de causa.
As mãos trêmulas com juntas já endurecidas atacam o teclado do computador, presente do neto mais velho.
Escrever com pachorra é como se estar casada, muito bem casada, diga-se de passagem, mas saber que às vezes será traída. É se fazer de cega, não dar trela ao tempo nem tampouco ao vento. Colocar aqui e ali um pouco do que se pensa e sente, um pouco de nós mesmas. É abrir e fechar parênteses.
A naturalidade e a sem-vergonhice são as mesmas dos tempos em que anotava segredos em seus diários de adolescente. Seus dedos se movem com a urgência de quem não quer deixar o pensamento escapar.
Rasgar o dicionário, esquecer a ortografia, abandonar a gramática e, mesmo assim, achar que tudo está no devido lugar. Assim é escrever por paixão. Fazer o certo só para depois desfazer. Errado é mais gostoso, dá mais prazer tomar caminhos insuspeitos, vias sinuosas e chegar a raciocínios insinuantes, andar num círculo deliciosamente vicioso que tende a durar dias, meses, anos e até vidas inteiras. A escrita é um vício tão excitante que só a inapelável obrigação de escrever profissionalmente é capaz de me fazer parar e, mesmo assim, só o faz porque quando chega essa hora já estou um tanto atrasada.
Para quem é de carne, este ofício é osso. E disso ela sabe muito bem.