Blog do Lulu 2.0

Monday, February 26, 2007

Nem todo sonho acabou.

Aquecimento feito, o apito ordena que comecem a marcação.
Entram os tamborins. Sobe pela espinha o arrepio que provoca o frio na barriga, acelera o coração e anuncia a entrada da Escola na avenida.
Picolé toma um longo trago de fôlego, ele é o puxador. Ao seu lado, outros cantores, cantoras, o pessoal que empurra o carro de som, enfim, quem não deixa o samba atravessar.
O enredo histórico, Brasil Colônia do Perfume Francês à Seiva de
Alfazema, composto por fantasias clássicas, acompanhadas por carros e alegorias suntuosas, encantou.
No dia do desfile competitivo, a Escola levantou a arquibancada.
Agora, como Campeã do Carnaval, não poderia fazer diferente.
À frente da velha guarda, seu Alaor, de fraque e cartola, conduz Marizete pelo braço. Ela comanda a evolução das damas, que vêm com seus pares e sombrinhas dançantes. Os dois formam um belíssimo casal de mestre-sala e porta-bandeira.
No carro abre-alas, Lucia é o destaque. Atributos para tanto não lhe faltam, que beleza de menina, e que carisma.
Entra pulando em cima de um vidro de perfume que imita os peitos da cantora Madonna, referência a obra de um extravagante estilista francês. De tempos em tempos, a monumental embalagem borrifa água nos passistas e foliões, um luxo.
Picolé chama o refrão. Logo a platéia vai com ele. Um coro composto por milhares de vozes canta o samba enredo composto por Raimundo de Oliveira.
Sua voz embarga, mas ele continua levando sua Escola com sangue, suor e agora, lágrimas nos olhos.
Dora desfila no chão, fala no pé. Sempre acompanhada pelo Mestre, ostenta a faixa, o cetro e a coroa de Rainha da Bateria. Cadeiras soltas, cintura firme, pés ágeis, que sorriso, que simpatia, que beleza de mulher, e ainda samba. A branquela coloca muita mulatinha no chinelo.
O apito soa. Ordena o breque. Agora é com Osvaldo, que vem na coordenação. A bateria faz uma manobra perfeita, melhor até do que no dia da apresentação oficial. Entra no recuo e espera a Escola passar. Tudo sob o olhar atento do pai, que observa orgulhoso Osvaldo Júnior fazer, e bem, a sua vez na linha de frente.
A ala das baianas é formada pelas quituteiras e mulheres rendeiras de Cidade Baixa, que giram suas saias amarelas e fazem brotar um canteiro de girassóis em plena avenida.
Atrás da bateria, trazendo a ala infantil, Amália vem como coordenadora chefe. Ela é a principal responsável pelo timing e desenvolvimento perfeitos da Escola durante as duas apresentações.
Podem falar o que quiserem, mas a mulher acerta o passo e o compasso da moçada.
Ao apontar na apoteose, as crianças, que trazem nas mãos ramos de louros embebidos em seiva de alfazema e ungem a passarela, encerram um dos desfiles mais empolgantes que a Marquês de Sapucaí, desde que se chama assim, já viu.
De repente, alguém salta da multidão e cumprimenta Picolé. Aperta sua mão. Pelo aperto, Picolé reconhece Amâncio. O bicheiro, patrono da escola e marido de sua amante, ou Picolé é quem era amante da mulher de Amâncio. Fato é que os dois andaram se pegando e agora quem vivia para pegar Picolé era o poderoso bicheiro e seus capangas.
Pronto! Mais uma vez o corno, desgraçado arruinou o sonho de Picolé, que acordou suando e com o coração querendo saltar pela boca.
Aquilo não podia continuar. Todo Carnaval era a mesma coisa, mas, ao mesmo tempo, ir até o Rio de Janeiro parecia ser uma idéia um tanto idiota.
Ao chegar lá, procuraria por Dora, que levou com ela Lucia. A mulher ama sambar e freqüenta regularmente a quadra da Mangueira. Grã-fina daquele jeito, dona daquele rebolado, sempre acompanhada de uma belezura de menina, não seria difícil encontrá-la. Difícil seria convencê-la a subir o morro e ir falar com Dininho Boca Suja; pedir para que ele interviesse em seu favor junto a Amâncio.
Dininho, comerciante barra pesada por quem Dora fora apaixonada, tinha grande influência em uma das principais áreas franqueadas por Amâncio, que, com certeza, não só, mas também por isso, atenderia ao pedido de clemência.
- Já fiz coisa muito mais idiota do que isto e ainda estou aqui… Vivo!
Picolé pensou rápido e não mais do que uma única vez. Foi até o escritório, na verdade o estoque, se sentou em cima de uma caixa, empilhou outras duas que serviram de mesa para ele apoiar o pedaço de papel e escrever a carta em que dizia deixar o bar Samba do Crioulo Doido sob os cuidados de seu Alaor e Osvaldo.
Entregou a carta junto com as gravações de suas apresentações a Marizete para que tudo chegasse às mãos de seu Alaor.
Pegou apressado o trem, foi até a rodoviária mais próxima e tomou atrasado o ônibus para o Rio de Janeiro.
A noite que, até então, parecia normal e corriqueira, tomou ares de drama assim que Marizete chegou e entregou o pacote a Alaor.
Estavam lá: Osvaldo, que já colocara a mesa para o jantar. Júnior, que fazia seu dever de casa e Amália, que acabara de chegar da loja.
Seu Alaor abriu primeiro a carta. A idéia agradou, e muito, a Marizete, que agora além do salão, teria um bar dançante para receber suas clientes.
Como não poderia deixar de ser, desagradou Amália na mesma intensidade e proporção. Enquanto uma estava eufórica, a outra se encontrava a beira da histeria.
Osvaldo ficara encarregado de fechar tanto o caixa quanto o bar. O que implicava em Marizete ter que ficar em casa para preparar o jantar e cuidar de Júnior, situação até então inédita para ela.
Ninguém ali fazia a mínima idéia das conseqüências e confusões que a decisão estapafúrdia e a intempestiva atitude de Picolé trariam.
Osvaldo:- Bom, aconteça o que acontecer… Que Deus o proteja… E que ele consiga o que quer.
Seu Alaor:- O homem não abandona seu sonho. O sonho é que abandona o homem.
Os dois brindaram à coragem e insensatez do amigo.
Osvaldo e seu Alaor:- Grande Picolé!

Wednesday, February 14, 2007

A Trindade da Santa Paciência.

Consciência:- Achei vocês.
Meio-Termo:- Meu Deus do céu... Minha Nossa Senhora…
Bom-Senso:- Aaaiiih…
Meio-Termo:- Que susto!
Bom-Senso:- Endoidou?
Meio-Termo:- Tá mais pra lá do que pra cá?
Bom-Senso:- Perdeu o juízo?
Consciência:- Tava brincando, seus bobalhões.
Bom-Senso:- Tá desocupada?!
Meio-Termo:- Também, daqui até depois do Carnaval, ninguém dá a menor atenção pra gente.
Bom-Senso:- Isso é verdade... Nesta época a gente entra numa baixa danada.
Meio-Termo:- Bom meu caro, você tá em baixa faz tempo.
Bom-Senso:- Olha quem fala... Até parece que tua cotação tá muito alta.
Meio-Termo:- É que ser radical voltou à moda, mas já, já passa.
Consciência:- Gente, não há razão pra discussões.
Bom-Senso:- E você…
Bom-Senso e Meio-Termo:- …A cada ano que passa ela fica mais gorda.
Consciência:- Só até depois do Carnaval, daí, é aquela correria... Aquela tremenda apelação para aliviar tanto peso... Isso para não falar na dor.
Meio-Termo:- Coitada, todo ano é a mesma coisa.
Bom-Senso:- Não seria assim se você fizesse bem o seu trabalho.
Meio-Termo:- Olha só quem tá falando?!
Consciência:- Calma gente! Não é culpa de nenhum de vocês.
Meio-Termo e Bom-Senso:- Então a culpa é tua.
Consciência:-…!
Bom-Senso:- Pronto… Magoou.
Meio-Termo:- E tem mais: se o mundo tá cheio de extremistas, eu não tenho nada a ver com isso.
Consciência:- Hummm… Será?
Bom-Senso:- Tem sim! Isso acontece porque você nunca tá onde deveria.
Meio-Termo:- Sabe de uma coisa: acho que todos nós temos uma parcela de culpa. A culpa é dos três e de ninguém ao mesmo tempo.
Bom-Senso:- Vai ficar em cima do muro? Novidade!
Consciência:- Tomara que caia! Tomara que caia!
Bom-Senso:- Por favor, não piore as coisas. Já é chato e me incomoda o suficiente assistir ao tremendo bunda-lê-lê que virou isto tudo.
Consciência:- Daqui eu não saio / Daqui ninguém me tira... A bagunça nem bem começou e eu já tô toda dolorida, me doem as pernas, as costas, a cabeça.
Bom-Senso:- Eu queria tanto poder fazer alguma coisa.
Meio-Termo:- Melhor tu ficar na tua porque, nesta época, se tem alguém de quem ninguém quer saber, este alguém é você!
Consciência:- Isso é verdade. É triste, mas é verdade.
Bom-Senso:- Consciência, este é um momento em que deveríamos dar as mãos.
Meio-Termo:- Também não precisa apelar, né?!
Bom-Senso:- Às vezes, apelar para a consciência é a única coisa que se tem a fazer.
Meio-termo:- Mas tu é um tremendo cara-de-pau… Puxa-saco.
Bom-Senso:- Ossos do ofício!
Consciência:- Vocês estão brigando por minha causa?
Meio-Termo:- Sim e não!
Consciência:- Como assim?!
Bom-Senso:- Não conhece?! Nunca fala nada que se aproveite, tá sempre com um pé em cada canoa… Vive desconversando.
Meio-termo:- Ossos do ofício!
Bom-Senso:- Que se eu não fosse quem sou quebrava um por um.
Consciência:- Gente, por favor, não briguem por minha causa!
Bom-Senso:- Todo ano, nesta mesma época, a gente entra em crise.
Meio-Termo:- Pra mim não muda muita coisa. Nunca ninguém quer saber de mim mesmo.
Consciência:- Eu ganho tanto peso, mas tanto… Depois passo o resto do ano sofrendo, pagando promessa, tentando perder.
Bom-Senso:- Eu levo a culpa. É incrível, não sou convidado, fico de fora e levo a culpa: faltou Bom-Senso aqui… Você poderia ter tido um pouco mais de Bom-Senso ali… Um tormento!
Consciência:- Eu vou ligar a tevê.
Bom-Senso:- Eu vou dormir até a algazarra acabar.
Consciência:- Olha lá, olha lá… Tão transmitindo o ensaio. Eu sou Portela!
Bom-Senso:- Eu sou Mocidade Independente de Padre Miguel.
Consciência:- E você, Meio-Termo?
Meio-Termo:- Eu torço para que vença o melhor.
Bom-Senso:- Ah não, no Carnaval não. Na Copa, você veio com aquela desculpa politicamente esfarrapada e agora essa.
Meio-Termo:- Verdade! Acho que todas têm o seu valor.
Consciência:- Ah, vê se dá um tempo, até eu já tô com o saco cheio disso... Fala aí, o Homem não tá ouvindo não, bobo.
Bom-Senso:- Ôh Consciência, não pega bem você ficar falando desse jeito. Isso lá é conselho que se dê?!
Meio-Termo:- Eu também acho!
Consciência:- Tá bom... Tá bom... Desculpa.
Bom-Senso:- Também não acho que seja um bom exemplo você ficar aí assistindo isso.
Consciência:- Você não estava indo dormir, heim?!
Bom-Senso:- Só estou vendo se está tudo trancado. E você Meio-Termo, vai ficar por aí?
Meio-Termo:- Não, não! Eu vou ficar um pouco por ali, um pouco por lá... Pode ir dormir que eu já tô de saída.
Consciência:- Vai dormir, vai querido, eu vou ficar aqui quieta no meu canto, ganhando peso... Ossos do ofício!
Meio-Termo:- Eu tô indo, tchá-au!
Bom-Senso:- Cuidado pra não se perder.

Sunday, February 04, 2007

Onde a festa nunca acaba.

Ressaca, a cidade toda parecia se sentir assim. O ano começou preguiçoso e o calor contribuía para desacelerar ainda mais o ritmo.
Durante o Natal, correu tudo bem. Dia 24, durante a tarde, foi distribuída toda a arrecadação do jogo beneficente, e a
meia-noite cada qual passou com sua família.
Foi na passagem do ano que a coisa complicou. A chegada de Dora tirou de vez a tranqüilidade de Amália, que não contava com o fato de sua amiga de infância conhecer, e tão bem, Marizete, sua madrasta.
A mulher ficou arrasada. Passou a estampar um sorriso amarelo de latente descontentamento. Bem diferente do passado, magnético, cheio de disposição e autoconfiança.
Pior ainda as coisas ficaram quando Lucia, filha de Marizete, chegou. A garota, um estouro de bonita, desistira da carreira de modelo e viera se aconselhar com a mãe.
A festa no Clube da Glória estava boa e comportada como sempre. Todo mundo bem vestido, a maioria de branco. Uns e outros arriscaram o azul, em busca de paz espiritual, ou o amarelo que, dizia a superstição, trazia dinheiro.
Comida farta, vestidos de baile, a banda da matriz tocando o repertório de sempre. Assim foi até que os fogos de artifício, vindos de Cidade Baixa, coloriram o céu chamando a atenção de Marizete, que teve uma idéia, digamos, iluminada.
A festa no clube estava muito desanimada para o que se espera de um réveillon, e desde que soube da existência do bar Samba do Crioulo Doido, a curiosidade começou a pinicá-la para não mais parar.
Logo após a contagem regressiva, Marizete fez seu pedido.
Marizete:- Alaorzinho, leva eu pra dançar... Tô com tanta vontade!
Seu Alaor:- Dançar?!
Marizete:- Vamos ao bar do seu amigo, o goleiro negão?!
Seu Alaor:- O Picolé! Você quer ir dançar lá no Samba do Crioulo Doido?
Marizete:- Ué, você não disse que é o único na região?! Então tem que ser lá mesmo.
Osvaldo, que andava entediado com as incessantes reclamações de Amália, se animou.
Osvaldo:- Boa idéia! Eu topo.
Amália:- Ficou louco?! Você dançando em Cidade Baixa… Você é pai de família Osvaldo, esqueceu?!
Osvaldo:- E o que tem uma coisa a ver com a outra?
Amália:- Vamos embora... A gente conversa em casa!
Osvaldo:- Eu vou com a Marizete conhecer o bar do Picolé.
Amália:- Papai…
Seu Alaor:- Vamos lá minha filha, você precisa relaxar um pouco.
Amália:- ...Até o senhor.
Seu Alaor:- Eu acho que ainda me lembro direitinho onde é.
O golpe fatal nas pretensões de Amália, que queria porque queria acabar com a festa, veio quando Dora e Lucia entraram na conversa.
Dora:- Quem falou em sambar? Eu topo!
Lucia:- Êba, eu também vou nessa.
Sem saber o que fazer nem o que dizer, Amália cochichou no ouvido de Osvaldo na tentativa de ganhar algum tempo.
Amália:- Olha só o assanhamento em que estão as duas... Acho que elas já beberam demais!
Osvaldo:- Pára com isso Amália, deixa as moças se divertirem.
Amália:- Moças? Moça, ali, eu só tô vendo uma!
Osvaldo:- Deixa de ser maldosa…
Dora:- Vamos Amália? A Marizete me falou de um tal de Picolé, um sambista de primeira, tô louca pra conhecer.
Amália:- Ai Dora, sabe o que é: eu acho que Cidade Baixa não é lugar pra gente como a gente. Quero dizer... Pra uma mulher assim... Como você.
Dora:- Agora que eu quero ir mesmo. Adoro lugares que não são pra gente como eu. Quem sabe o caminho? Eu dirijo.
Lucia:- U-hu!
Seu Alaor rapidamente se ofereceu para guiá-las.
Quando se deram conta, Marizete já tinha o microfone nas mãos e convidava a todos para que os seguissem.
A caravana vinda de Cidade Alta foi muito bem recebida pelo pessoal que se divertia como pré-adolescentes em dia de praia e pelada.
Dora mostrou o que aprendera em tantos carnavais passados no Rio de Janeiro.
A branquela quando sambava mudava de cor. Cadeiras soltas, cintura firme, pés ágeis, os braços estendidos saudando a todos que, boquiabertos, assistiam. Resultado de muitas noites varadas no berço sagrado do samba, o morro da Mangueira.
Lucia não sambava tão bem, mas não decepcionava não, afinal, o que tinha de bonita lhe bastava para encantar e abalar os princípios dos cavalheiros mais fiéis e renitentes.
Quem foi na deles, recebeu o ano novo cantando e dançando. Quem não foi, ouvia até hoje as lembranças e boas histórias daquela madrugada.
O Samba do Crioulo Doido, aos poucos, foi ganhando fama e começou a ser freqüentado pela terceira geração das mais tradicionais famílias de Cidade Alta.
Picolé virou celebridade. Seu bar tornou-se parada obrigatória para quem vinha de fora, ou não conhecia bem a região. Passou a figurar em guias turísticos e virou sinônimo de descontração e alegria. Até onde se podia ser célebre por aquelas bandas, Raimundo Picolé de Oliveira agora era.
Lucia e Dora se aproximaram e tornaram-se muito amigas. A alegria e juventude da garota era o que faltava para motivar Dora a retomar sua carreira de estilista.
Seu Alaor, Marizete, Osvaldo e Júnior levavam a vida numa boa. Pai e filho se divertiam de um lado, enquanto o casal brincava de outro. Amália se entregou de corpo e alma ao trabalho e nos últimos tempos andava num estresse danado.
Amália:- Osvaldo, de onde essas duas sirigaitas se conhecem? Eu sei que você sabe, trata de abrir o bico!
Osvaldo:- Querida, acho melhor você perguntar pro seu pai.
Amália:- Não me irrita mais do que eu já tô, Osvaldo! O que está acontecendo aqui? Que tipo de armação é essa?
Osvaldo:- Que armação? Você pirou de vez, é?! A Marizete e a mãe da Dora se conheceram lá no Rio de Janeiro, há muitos anos, e ficaram muito amigas. Perderam o contato e agora se reencontraram aqui. Tremenda coincidência, né?! A Dora é madrinha da Lucia, sabia? Como este mundo é pequeno!
Amália:- Chega, pára Osvaldo... Cala essa boca...
Osvaldo:- Ninguém mandou perguntar!
Enquanto isso, em Cidade Baixa o pessoal espanta a preguiça se preparando para o Carnaval, que pelo jeito, vai dar muito do que falar.