Blog do Lulu 2.0

Thursday, September 13, 2007

Carta à falecida.

Gritou discordando do inseparável grupo de amigos.
- Durante o enterro não!
Acreditar ele não acredita em nada. Agora, vai que existe sim alguma coisa por lá, o negócio poderia ficar feio, não custava esperar.
- Vamos deixar para missa... É isso! Daqui a sete dias o corpo já esfriou e a alma da desgraçada foi para onde deve ir.
O grupo de amigos, que juntos aprontavam barbaridades desde
a mais tenra infância, conhecia a história do começo ao fim. Presenciaram a riqueza e a pobreza; a alegria e a tristeza e planejaram tudo muito bem. Primeiro uma cerimônia maravilhosa, inesquecível nos mínimos detalhes. Reservou-se horário no sétimo dia a contar daquela data, e logo pela manhã. O lugar, uma das maiores e mais elegantes igrejas da cidade. Templo onde as celebridades ascendentes se casam pela primeira vez, e as decadentes se unem outras tantas. A decoração, obra assinada por Inezita de Alencar, foi uma das grandes atrações. Houve quem acudisse à cerimônia só para ver o que a artista de interiores, assim se autodenominava, tinha aprontado desta vez. Para ela não importava, fosse uma casa, um salão, uma empresa, cemitério ou igreja, qualquer espaço, ao ser brindado pelo seu toque, se transformava, imediatamente, em um santuário dedicado à beleza e ao bom-gosto.
O padre, trazido de Roma, celebrou a missa em latim, com trechos em italiano que os fiéis, orientados pelo sistema de tradução simultânea, repetiam a uma só voz.
Ao seleto grupo de amigos foram reservados os lugares de honra, bem na frente. Eles seguiram obediente e pacientemente a todo o ritual.
Pouco antes do encerramento, em uma das breves pausas, momento em que se podia ouvir o canto dos gregorianos, o marido, aparentemente enlutado, pediu a palavra. O coro silenciou e a platéia se acomodou.
De dentro do envelope, ele retirou uma folha cuidadosamente dobrada e, emocionado, com a voz embargada, leu a carta.
- Amada, quando você sussurrou baixinho no meu ouvido, em seu leito de morte, que havia apostado todas as suas fichas em mim e que eu tinha posto tudo a perder, confesso que a princípio fiquei indignado. Mas logo, graças à reflexão, aos conselhos do padre e de alguns de nossos familiares e amigos, entendi tudo: Deus te fez pobre de posses para conter a pompa e para que jamais te aproximaste de uma casa de jogos. Providência celestial e desesperada, uma tentativa divina e derradeira de fazer de ti algo mais humana.
O burburinho já começara. Os amigos e alguns curiosos prendiam o riso. Outros se entreolhavam e comentavam sem nada entender. Parte da família já estava indignada.
Ao pedido de silêncio do padre italiano todos atenderam, e foi só assim que ele pôde continuar. E continuou, manteve o mesmo tom sério, de profunda comoção.
- À família gostaria de confortar dizendo que nossa tão estimada esposa, filha, irmã e amiga morreu feliz. Sempre repudiou a idéia de acabar como a mãe, uma simpática senhora que vive solitária em um balneário. Não acabou! Para alcançar tal feito exerceu, por toda a vida, o egocentrismo e a presunção que atribuía ao pai, vindo assim a falecer no mais alto degrau de sua soberba. E nós, que hoje estamos aqui reunidos, viemos não só para nos despedir, mas também para dizer que já foste tarde. Amém!
Em respeito à casa de Deus e ao sacerdote importado, os espectadores aguardaram o encerramento do cerimonial e, antes mesmo que o padre tivesse tempo de dizer adeus, homens, mulheres e crianças saíram em perseguição ao viúvo vingativo e seus amigos. Enfurecidos, a irmã recém parida, o cunhado grandalhão e parentes mais próximos, divididos em grupos, iniciaram o que parecia ser uma implacável caçada.
Tudo saiu exatamente como o grupo planejou, até a fuga. Entraram por ruas estreitas, atravessaram vielas pelas quais não andavam desde moleques. Dobraram as esquinas em que antes ficavam as meninas. Pularam os muros que resistiram ao tempo e foram parar no beco onde se escondiam quando jovens. Ali, comemoraram vitórias, choraram derrotas e cantaram seus grandes feitos.
Depois de alguns minutos, tempo usado para recuperar o fôlego, um deles sacou uma garrafa de bolso, molhou a garganta e chamou aquele que um dia foi o hino da turma.
- Mãe é mãe / Paca é paca
Mas mulher / Mulher não
Mulher é tudo...
Cantaram, correram, chutaram lata, reviveram os saudosos velhos tempos em que ainda parecia possível ser feliz. E para sempre.


Homenagem ao humorista Cláudio Besserman Vianna, o Bussunda, um sujeito que sempre encarou a verdade pelas costas, como manda a preferência nacional.